“Há festa na aldeia”, “As férias do Sr. Hulot”, “O meu tio” e “Vida moderna”, de Jacques Tati

 

A primeira destas longas metragens tem um estrábico que martela sempre ao lado do alvo e que, algumas cenas depois, faz pontaria numa barraca de prémios na feira; tem uma mosca que importuna todas as pessoas com que se cruza (até o tocador de pratos da orquestra, como em “The band concert”, a obra-prima de Walt Disney protagonizada por Mickey e Donald em 1935); tem uma festa popular que inclui uma tenda que exibe um filme sobre a visionária eficiência do sistema de correios norte-americano; tem uma saída de bicicleta vagamente alcoolizada do carteiro no fim da festa; tem uma bicicleta que circula sozinha por vários quilómetros, seguida pelo seu desesperado dono.

 

 

Outro destes filmes tem o barulho metálico da porta do restaurante que se abre e fecha com uma frequência exasperadora; tem um barco que se fecha ao meio, ganhando a aparência da boca de um qualquer monstro marinho; tem uma coroa de flores sui generis que acidentalmente vai parar ao centro de um funeral; tem uma lição sobre a arte de endireitar quadros pendurados na parede; tem um cavalo que dá um coice, entalando um homem no porta malas do seu carro; tem um peculiar mergulho no rio, de dimensão coreográfica praticamente olímpica, projetado pela corda que puxava um carro; tem um elevador manual que não faz subir uniformemente todo o carro, mas apenas cada um dos seus assentos individualmente; tem uma sessão de fogo de artifício de contornos apocalíticos.

 

 

O “terceiro” tem um complexo plano da subida das escadas no prédio onde o protagonista habita; tem a preocupação da dona de casa nouveau riche em ligar a fonte em formato de peixe antes da entrada de cada visita; tem uma quantidade impossível de fumo que a vizinha expulsa da boca ao fumar; tem a obtusa ginástica artística necessária para percorrer o jardim sem dar um passo que seja fora das pedras do caminho; tem duas silhuetas em contraluz, em duas janelas redondas, como dois olhos que mudam de direção do olhar; tem um novo portão de garagem ativado por um feixe automático que, inadvertidamente acionado pelo cão, prende os donos por dentro logo no dia em que é inaugurado.

 

 

Por fim, a mais recente destas obras tem o caminhar metronómico e profundamente irritante das personagens que vão calcorreando os corredores do edifício; tem a simetria obsessiva das coreografias e dos gestos mais mundanos; tem um porteiro velhote a tentar operar o intricado sistema de comunicações do prédio; tem uma feira de artigos para a casa que promove novidades como a vassoura com faróis acoplados ou o caixote de lixo em formato de coluna grega; tem os cartazes turísticos que exibem o mesmíssimo edifício mas que anunciam diferentes destinos; tem a simultaneidade da ação sem som do apartamento ultramoderno do ex-colega da tropa do protagonista e os dos seus vizinhos; tem sucessivos e incontáveis incidentes decorridos durante a frenética abertura do restaurante.

 

 

Mais do que meros gags históricos, são milagres canónicos da história da comédia. Da história do cinema. Da história da criação humana. Pertencem, respetivamente, a “Há festa na aldeia” (“Jour de fête”, 1948), a “As férias do Sr. Hulot” (“Les vacances de Mr. Hulot”, 1952), a “O meu tio” (“Mon oncle”, 1958) e a “Vida moderna” (“Play time”, 1967), a cabeça, o tronco e os membros da obra de Jacques Tati, recentemente reeditados em DVD pela Atalanta (com capas graficamente bastante mais dignas do que as permitidas pela anterior edição, de 2004) e, por uns dias, honrados com o regresso ao grande ecrã do cinema Nimas. Para consumo doméstico, as edições mantêm-se particularmente felizes por permitirem igualmente o acesso a um conjunto de curtas metragens que, por um ou por outro motivo, lhes estão associadas. “Há festa na aldeia” junta-se a “A escola de carteiros” (“L’école des facteurs”, 1947), que lhe esteve na génese e de onde recuperou alguns dos mais memoráveis momentos, que, mesmo cenicamente revistos, surpreendem tanto como da primeira vez; “As férias de Mr. Hulot” reúne-se com “Aulas noturnas” (“Cours du soir”, 1967), que recorda igualmente uma das cenas de “A escola de carteiros”; “O meu tio” agrupa-se com o iniciático “Cuida do teu gancho esquerdo” (“Soigne ton gauche”, 1936), com o qual estabelece uma série de rimas tácitas.

 

 

Tudo se constrói numa evolução lógica e sustentada da pequena para a grande escala, cronológica, geográfica e ontologicamente. Há um evidente prenúncio de toda a modernidade que se lhe seguiria já em “Há festa na aldeia” (sintetizada no carteiro que quer passar a ser como os modernos carteiros americanos…), embora ainda no recato e na pacatez campestre. Do campo para a cosmopolita praia de “As férias do Sr. Hulot” dista apenas um circunstancial passo, tal como o que nos leva até “O meu tio”, que, por sua vez, é uma metafórica abertura de caminho para “Vida moderna” – uma casa “inteligente” e futurista no centro do “conflito” relacional, antes do prédio e da cidade… “Vida moderna” são duas horas rigorosamente imaculadas e inesgotáveis de insondável génio e síntese caricatural, minúcia formalista extrema, paráfrase definitiva dos “Tempos modernos” (como no filme de Chaplin, mas em oportuna reinvenção, 30 anos depois), contemplando todos os excessos e contrasensos e extravagâncias e contradições do progresso. Tudo aqui é estilo, sem jamais deixar de ser mensagem. Nada é descuidado, deixado ao acaso. Uma proeza de subtileza sátirica e fantasia geométrica.

 

 

Pensamos em burlesco enquanto matéria cinematográfica e logo nos surgem pelo menos duas ou três figuras em mente. O facto de Tati ser invariavelmente uma delas é sintomático da sua importância central na história da comédia (ainda mais por ser, indubitavelmente, o mais importante dos não anglófonos…). Mas ainda é burlesco? Porque é subtil e interior e elegante e elípitico e quase contido, ao contrário dos Marx, de Laurel & Hardy ou de Chaplin, que são praticantes de um tipo de energia consideravelmente mais sensorio-motor e absurda. Há nestas quatro pérolas uma melancolia introspetiva quase sempre presente, como contraponto ao labor da caricatura desses seus mestres. Em “Cinema 2 – The time image”, Gilles Deleuze nomeia-a “a quarta idade do burlesco”, erguida em movimentos distintos por Tati e por Jerry Lewis, naquilo que Henri Bergson descreve como a “low frequency wave-action” e que Deleuze aplica a ambos.

 

 

Poucas vezes o corpo no cinema foi tão esclarecido e tão gráfico e tão balético na sua rotina. Poucas vezes o quase silêncio foi quase tão oposto ao mudo e, simultaneamente, tão eloquente – o som, parecendo tão discreto, poucas vezes desempenhou tamanho protagonismo narrativo como na sua obra. O inadaptado Hulot é um clássico (romântico e poético) perdido num futuro social em crescimento voraz e exponencial (logística e relacionalmente), mas também um seu exímio narrador. Por tudo isso é, ainda hoje, mais de 40 ou 50 ou 60 anos depois da sua conceção, tão fundamental conhecer a fundo o seu trabalho. E dá-lo a conhecer aos Hulots que crescem à nossa volta…

 

 

dvd’s “Há festa na aldeia” [“Jour de fête”], “As férias do Sr. Hulot” [“Les vacances de Mr. Hulot”], “O meu tio” [“Mon oncle”] e “Vida moderna” [“Play time”], de e com Jacques Tati
todos Atalanta, reed. 2011
[a partir dos 6 anos]

23 + 25 > 27 dezembro, 3 pm + 9.30 pm
filme “Há festa na aldeia” [“Jour de fête”], de e com Jacques Tati [dia 23]
filme “Vida moderna” [“Play time”], de e com Jacques Tati [dia 25]
filme “O meu tio” [“Mon oncle”], de e com Jacques Tati [dia 26]
filme “As férias do Sr. Hulot” [“Les vacances de Mr. Hulot”], de e com Jacques Tati [dia 27]
Espaço Nimas, Lisboa
[a partir dos 6 anos]

 

Moreno Fieschi

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