
Faria 95 anos a 13 de setembro. Quem não tiver medo de cemitérios e decidir visitar a sepultura do escritor de origem galesa Roald Dahl, na igreja de St. Peter and St. Paul, em Great Missenden, Buckinghamshire, Reino Unido, pode ficar surpreendido, perplexo, chocado, estarrecido, quiçá até bastante enojado (isto se não se tiver antecipadamente preparado para a visita lendo, pelo menos, “Os tontos”, “O dedo mágico”, “As bruxas”, “James e o pêssego gigante”, “O fantástico Sr. Raposo”, “O enorme crocodilo” e “O GAG”). Na sepultura, não encontramos flores radiosas, ou plantas nobres em vasos, jarrões ou jarrinhas. Também não encontramos mármores cintilantes e anjinhos rechonchudos. Não vemos cruzes, fotografias, ou elogiosas inscrições fúnebres em verso. Apenas uma lápide vertical e um nome: Roald. Na zona inferior, junto às ervas daninhas que por lá crescem livremente, o desenho de uma garrafa, de duas cartas e de um livro. Depois, espalhados, alguns brinquedos já muito estragados pelo uso e pelo tempo (uma cenoura de plástico, um ursinho de peluche, um “jack-in-the-box” em forma de ovo) e, ainda, plantada, uma alta, enorme, maravilhosa, rija e escamosa cebola.
Paradoxal, contraditório, intrigante, dilacerado entre o apelo de uma ambição desmesurada e o desejo intenso de regresso à infância, herói de guerra, mentiroso, arruaceiro, gentil, egoísta, arrogante, provocador, vaidoso e malcriado; mais alto do que a maioria, voz rouca pelo tabaco; falava três línguas: inglês, norueguês e swahili – eis um retrato possível de Roald Dahl.
A sua relação com a escrita para crianças teve um início relutante, mas foi esta opção artística que o tornou popular, rico e famoso em todo o mundo, do Japão a Israel, do Brasil à Tailândia. Só a primeira edição na China foi de dois milhões de exemplares. Na Grã-Bretanha, entre 1980 e 1990, mais de 11 milhões de livros em paperback foram vendidos – o que significa que, no final da sua vida, uma em cada três crianças comprava ou recebia de presente um livro de Dahl anualmente.
As histórias são subversivas, hedonistas, fazem-nos tropeçar em elementos extraídos das experiências de vida do autor, mas seguem o modelo dos contos tradicionais. Agarram os leitores, provocam o riso e lidam com os seus maiores medos. São histórias surpreendentes, de medo, de opressão e crueldade, delirantemente imaginativas e amorais. São histórias de coragem, de solidão (os heróis são geralmente crianças solitárias, como Dahl), de desafios, descobertas e poderes extraordinários.
Por exemplo, em “As bruxas”, encontramos discretas reminiscências dos pais noruegueses e das férias que passava na Noruega, e ainda vestígios de tragédias, como a pneumonia que levou o pai, dois meses depois da morte da irmã mais velha, de apendicite. Sophie, mãe de Roald Dahl, com o bebé ainda na barriga, fazia longos passeios no campo, diariamente. Escreveu Dahl, em “Boy”: “Se o olhar de uma mulher grávida estiver constantemente a observar a beleza da natureza, esta beleza irá ser transmitida à mente do bebé por nascer ainda no útero, e o bebé vai crescer tornando-se um amante das coisas belas”.

“Charlie e a fábrica de chocolate”, a obra que Tim Burton celebrizou na adaptação ao cinema, rapidamente se tornou num dos livros mais populares de Dahl. Por essa razão, o autor escreveu a sequela “Charlie e o grande elevador de vidro” (1972), e esboçou “Charlie na Casa Branca”, que nunca concluiu. “Charlie e a fábrica de chocolate”, juntamente com “O fantástico Sr. Raposo”, foram recentemente reeditados pela Civilização, com nova tradução portuguesa, e mantendo as tradicionais ilustrações de Quentin Blake. A maior novidade da edição passa pelas informações biográficas que oferece no final.
A Fundação Roald Dahl apoia projetos nas áreas da hematologia, neurologia e literacia. Em 1992, a fundação financiou uma biblioteca e um mini-bus para um centro de tratamento para crianças epiléticas. Patrocinou também diversos eventos musicais, como uma versão musicada (por Paul Patterson) de “O capuchinho vermelho”, com a London Philharmonic no Royal Festival Hall (novembro de 1992), por exemplo, com o objetivo de promover a ligação com a música e fornecer aos professores material de qualidade para utilizarem durante as aulas.
Vale a pena espreitar o The Roald Dahl Museum and Story Centre e fazer uma visita virtual à cabana que o escritor mandou construir no seu jardim, a Gipsy House. Foi lá que, instalado na sua poltrona velha e desbotada, joelhos cobertos com um cobertor axadrezado, apoiado sobre um tabuleiro de madeira que ele próprio construiu e que cobriu com um tecido de feltro verde da sua mesa de snooker, Roald Dahl escreveu todas as suas histórias. Duas horas de manhã, duas horas à tarde, ritualmente. Usava sempre afiadíssimos lápis amarelos Dixon Ticonderoga e escrevia inevitavelmente em folhas de papel pautado amarelo, que encomendava diretamente dos Estados Unidos. Na parede, papéis, recortes, cartas, fotografias, esboços, desenhos infantis, um cartaz de aniversário e até uma moldura expondo uma válvula Wade-Dahl-Till (instrumento cirúrgico que ajudou a criar para tratar a hidroencefalia de que padecia o seu filho Theo). Há ainda uma folha de papel, presa com um alfinete, onde se pode ler: “’Art is a lie to which we give the accent of truth’ – Edgar Degas”.
Dahl achava muito divertido escrever sobre personagens nojentas. A maneira ideal, explicava ele, era começar e ir escrevendo, escrevendo, várias vezes, tornando as personagens progressivamente mais e mais nojentas… Para celebrar o dia 13 de setembro, dia de aniversário de Roald Dahl, propomos um concurso, a que daremos o nome de “Jogo das Ofensas Mais Nojentas e Originais”. Para além do efeito sublimador de tensões conscientes, sub-conscientes, pré-conscientes (e até inconscientes!); para além dos esperáveis efeitos preventivos, paliativos, diuréticos e laxativos; para além de constituir um excelente exercício linguístico fono-articulatório e gramatical, abrangendo os níveis semântico, lexical, sintático, morfológico, sintagmático e sociolinguístico, constitui um recomendável exercício neurocognitivo. Divirtam-se. Entretanto, aqui vos deixamos uma lista “made by Roald Dahl”, para se inspirarem: “coradinho enfezado”, “pateta-alegre”, “camarão encarquilhado”, “anãozinho porco”, “epigrama coxo” (adoramos este!), “lagarta raquítica”, “peludo esgrouviado”, “pifarozinho avariado”, “garrafa partida”, “enfezado mentiroso”, “come-lavagem”, “javali africano peludo”, “bruxa velha”, “nabo podre”, “velho peixe malcheiroso”, “velho estafermo nojento”, “brutamontes selvagem”,…

livro “Charlie e a fábrica de chocolate”, de Roald Dahl com ilustrações de Quentin Blake
livro “O fantástico Sr. Raposo”, de Roald Dahl com ilustrações de Quentin Blake
ambos Civilização, 2011
[a partir dos 8 anos]
Paula Pina