Estou com sono. Estou com muito sono mas não vou dormir. Abro de novo o portátil. Uma luzinha azul treme, indicando falta de bateria. Agarro num bloco e num lápis. Estou com sono mas não vou dormir. Vou escrever. Vou escrever sobre um homem.

É alto, muito magro, excessivamente magro. Assustadoramente magro. Está inclinado sobre uma mesa. A mesa está torta. Embrulhada num pano, uma fatia de pão escuro, duro. É de noite e está frio, um frio russo, mas a lareira está apagada, húmida. O homem escreve depressa, quase sem respirar. As folhas amarrotadas cobrem-se com a sua letra inclinada. Os cadernos são grosseiros, desiguais, as folhas desprendem-se e algumas caem no chão. No pequeno quarto desnudado, destaca-se um armário, gavetas meio abertas, atulhadas de folhas atadas com cordel. Folhas de papel também nas cadeiras esqueléticas, e sobre a cama desfeita, no canto. Do outro lado, ao pé das três janelas, uma cadeira de baloiço. O homem vira-se de repente para a porta, escutando os passos pesados, autoritários, apressados, subindo as escadas. O rosto, agora iluminado, está brilhante, pequenas gotas de suor nas têmporas arruivadas, os olhos claros inundados por uma vermelhidão líquida. No meio da testa, a marca profunda do franzir dos loucos entre as sobrancelhas salientes. Insolências sobrantes, ironias íntimas, provocações disfarçadas, esculpiram-lhe marcas de risos antigos nas faces encovadas. O homem levanta-se e, em movimentos rápidos, precisos, antecipatórios, baixa-se junto à cama e puxa uma mala esburacada, cujos fechos estalam sob a pressão dos dedos longos. O barulho dos passos é cada vez mais intenso. Uma voz de mulher que protesta, um grito, uma criança que chora. As gavetas do armário estão agora abertas, vazias. As folhas acumulam-se no fundo da mala, em rolos improvisados, em pilhas ansiosas. Numa corrida, o homem agarra no último caderno, segurando-o junto ao peito. A tinta mancha-lhe o peitilho, os punhos, o colarinho. Pancadas na porta. Num gesto súbito, o homem arranca do peito esse último caderno, atirando-o para dentro da mala, que empurra, com o pé, para debaixo da cama. As costas do homem estão direitas agora, a pose é a de lorde inglês, olhar altivo, sardónico. Aguarda.
– Daniil Ivánovitch Iuvatchov? N.K.V.D. Considere-se preso por atividades literárias antissoviéticas.
Nascido em 1905, Daniil Harms, aquele que é hoje considerado um dos grandes escritores e dramaturgos da história da literatura russa, morreu de fome durante o rigoroso inverno de 1942, esquecido numa prisão russa para doentes mentais. A mala com os manuscritos foi milagrosamente recuperada de entre os destroços da casa bombardeada, durante o cerco nazi a Leninegrado, pela mulher e por um amigo. Parece uma história, mas não é.
“Estou interessado apenas no nonsense. Só naquilo que não tem qualquer sentido prático. Estou interessado na vida apenas na sua manifestação absurda”, afirmou Harms. É a confirmação reiterada de que a realidade é mais absurda do que a ficção. É a biografia a espelhar a escrita, a escrita a refletir a vida, em surreal palíndromo. Harms fia, tece, corta, recorta, baralha, aborta, transforma, condensa, comprime e implode. Os seus textos não precisam de explicações ou de contextualizações. Saltam habilmente sobre as armadilhas do esperável, do estandartizado, das estratégias composicionais e autorais, e espreguiçam-se, provocatórios e miniaturais, em auto-referencialidades obsessivas, paródicas, absurdas. Da teatralidade beckettiana dos cartoons e filmes mudos, ao universo “nonsensical” de Carroll e Lear, estes contos para crianças de Daniil Harms, sendo contos para crianças, são também dez brevíssimos manifestos meta-ficcionais pós-modernos (não será esse um dos grandes fascínios da literatura para crianças?).

Na deliciosa edição da Bruaá de “Esqueci-me como se chama – Histórias e poemas de Daniil Harms”, com ilustração de Gonçalo Viana, o absurdo debica, esgaravata e saracoteia-se por todo o lado, do título à capa, contracapa e guardas, passando pelo índice, textos e ilustrações e terminando no aéreo anúncio do FIM. O texto brinca com a imagem que brinca com o texto que brinca com o leitor que brincará com ambos. O grafismo cromático caleidoscópico retro, a surpresa da opção geométrica e arquitetónica dos elementos visuais, a própria inspiração nas figuras tradicionais das matrioskas russas animadas e na expressividade caricatural típica dos antigos “scraps” e cartoons de imprensa, pela sua inteligência e dosagem ideal, tornam as histórias de Daniil Harms ainda mais subversivas.
Convites à participação dos narratários-ouvintes surgem incrustados nos textos. A ilustração acompanha o desafio. Seremos nós capazes de corresponder?
livro “Esqueci-me como se chama”, de Daniil Harms com ilustrações de Gonçalo Viana
Bruaá, 2011
[a partir dos 5 anos]
Paula Pina