
Dizem os linguistas (“vendo-se gregos”) que as expressões idiomáticas sempre constituíram um problema para a gramática, ou melhor, que a própria definição de idiomaticidade (“deus-nos-acuda”), sendo sobretudo um fenómeno semântico, possuiria aquela caraterística de não composicionalidade, definida em função da convencionalidade. Ou seja, sem conhecimento prévio da regra, como a maior parte das expressões idiomáticas distribuem sentido pelas partes que as compõem, não se curvam à literalidade (“é um ver-se-te-avias”, portanto)…
O que a ilustradora e designer de comunicação Catarina Sobral faz em “Greve”, seu livro de estreia, nesta semana lançado pela Orfeu Mini, é oferecer-nos, “ponto por ponto”, um texto que vai longe na exigência decifrativa e no consequente resultado humorístico. Em primeiro lugar, toda a obra atribui dimensão gráfica a um encadeamento de expressões idiomáticas em torno da palavra “ponto”, que pedem uma leitura atenta; depois, múltiplos textos (subtextos, intertextos, paratextos e metatextos) se esgueiram, se infiltram, se revelam ou escondem, sublimemente descarados e disponíveis para a sorridente descoberta simultânea, algures nas ilustrações. Num primeiro nível, surgem referências artísticas ousadas: à obra “Ulysses” e à figura de James Joyce, à obra de Amadeo de Souza-Cardoso, Fernando Pessoa e à “Orfeu”, à peça shakespeariana “Hamlet” (desta feita não com a caveira na mão, mas brandindo uma tíbia); num outro nível, encontramos referências a objetos, marcas e produtos que podem passar despercebidos a quem não pertenceu à geração dos automóveis “Carocha”, dos eletrodomésticos Miele, Lavamat ou Minerva, a todos os que não usaram detergente Rinso, aos que não leram a Burda nem a Crónica Feminina, a quem não estudou pelos antigos compêndios para o ensino liceal e por sebentas científicas em carteiras com tampo de abrir, com buraco para colocar o tinteiro, aos que não fizeram as contas do mês com caneta de aparo, a todos os que não reconhecem as amarelecidas folhas dos cadernos e mapas, os catálogos, fotografias e guias, a sépia e a preto e branco…

Parte da originalidade subversiva de Catarina Sobral deve-se às sobreposições de elementos gráficos e de perspetivas, às colagens originais de efeitos inesperados, aos jogos constantes com o nonsense. “Greve” é uma narrativa fílmica e dinâmica, em que todos os elementos, mesmo os balões de banda desenhada, parecem estar em cada página apenas de passagem, vindos de algum lado e dirigindo-se para outro lado qualquer. Personagens sem rosto ou de rostos alongados, minimalizados numa geometria retangular, olhar ciclópico, de traço infantil, meio centopeia, meio protozoário, penteados “à garçonne”, seguindo o figurino das revistas para “a mulher moderna” da época, são expressivas nas suas conversas mudas e gestualidade rígida. Repare-se ainda na inteligente ironia de incluir a ficha técnica no corpo da narrativa, apresentando-se um excerto de página de jornal fictício anunciando a data de lançamento da própria obra (hoje, dia 29 de outubro, na Biblioteca Camões, Lisboa), ou anunciando o tão esperado livro “Oinc! A história do Príncipe-Porco”, com litografias de Paula Rego e texto de Isabel Minhós Martins, a partir de um conto de Straparola, que a editora publicará daqui a poucas semanas. Mas o mais significativo nesta “Greve” é o facto de, mesmo que o leitor não esteja familiarizado ou desconheça as referências sofisticadas, mesmo que não descubra os detalhes culturais, mesmo que os anacronismos não suscitem um sorriso mais rasgado, a leitura continuar a resultar.

Exibindo uma vertente política, panfletária até, na escolha das cores e nas referências, “Greve” é cómico e provocador, numa época de agitação económica e social, como é esta que vivemos, brincando inclusivamente com os efeitos do marketing na atribuição de prémios, com catalogações arbitrárias, com suspeitas inclusões ou exclusões em Planos Nacionais seja do que for: “Pointless award”, “Melhor livro desde maio ’68”, “Prix OhhhMonDieu!” e “Recomendado pelo PNC* Plano Nacional de Costura”…
Acaso ou não, o que é certo é que, no nosso exemplar de “Greve”, a ponta de uma linha branca, despontada, espreita na costura que une as páginas de rosto. Terá alguma coisa a ver com o facto de a direção de arte/design ser da responsabilidade da Alfaiataria de Rui Silva? Não queríamos escrever nem mais uma linha, mas gostaríamos mesmo de saber se foi ou não por acaso. Detestamos deixar pontas soltas…
livro “Greve”, de Catarina Sobral
Orfeu Mini, 2011
[a partir dos 8 anos]
Paula Pina