Eis um projeto de escrita, visual, gráfica, humorística, que teve a sua génese na blogosfera e que surge agora editado em livro pela Bizâncio. Nestes divertidos mini-cartoons a preto e branco (e vermelho), as letras, os números, os sinais gráficos e outros carateres ganham personalidade, novo corpo e voz. São personagens atuantes e críticas, que nos ensinam a olhar, a redescobrir as possibilidades que jazem, escondidas, por trás dos símbolos e sinais de que vivemos cercados, que para nós já não têm presença e que usamos sem pensar. São diálogos, sketches, observações, críticas, perguntas, ingenuidades e maledicências, misturando a sátira política e social, a história e a cultura, oferecendo-se deliciosos didatismos linguísticos. Do velho se faz novo em combinações inusitadas; formatos conhecidos reconfiguram-se em contextos originais; o quotidiano enfado ora se adoça, ora se agudiza, em pequenos detalhes surpreendentes, cómicos e irónicos, desde os números das páginas (que não são “apenas” paginação), até ao código de barras final, passando pela ilustração de expressões idiomáticas. Um exercício de criatividade a partir de fontes potencialmente inesgotáveis.
Alexandre O’Neill, nas suas “Poesias completas, 1951-1981”, havia já dado vida aos sinais gráficos, por exemplo, transcrevendo-lhes os pensamentos e a voz na primeira pessoa:
^
Se me puseres
Serás a mais bonita das mulheres.
ou
^
Dou guarida e afecto
A vogal que procure um tecto.
…
Em aberto, em suspenso
Fica tudo o que digo.
E também o que faço é reticente…
( )
Quem nos dera bem juntos
Sem grandes apartes metidos entre nós!
.
Depois de mim: maiúscula
Ou o espaço em branco
Contra o qual defendo os textos.
São muitos os autores, sobretudo de literatura para crianças, que, armados de bem intencionados propósitos, tentaram já explorar estas dimensões, com resultados oscilando, geralmente, entre o sofrível e o desastroso, caindo muitas vezes no facilitismo dos versinhos insípidos, ou das historietas didáticas sem fulgor. Muitos professores, igualmente dedicados, mas bastante menos imaginativos e pressionados por angústias pedagógicas, socorrem-se de técnicas de escrita criativa, mais por obrigação e receituário salvífico, do que por verdadeiro prazer e convicção.
Há obras inspiradas pelas formas das letras, pelos sons, pelos grafismos, pela espacialização, de cunho marcadamente surrealista, por exemplo, mas poucos escritores e ilustradores de literatura infantil e juvenil ousam percorrer os novos caminhos que a poética visual contemporânea e artes plásticas e digitais já traçaram.
Mário Castrim em “Estas são as letras”:
Q
Dizem qualquer coisa e eu pergunto:
– Quê?
Pergunto sempre:
– Quê?
Não sei porquê
O meu amigo V
Zanga-se e diz:
– És surdo ou quê?
E eu respondo sinceramente:
– Sou quê.
José Carlos de Vasconcelos em “De águia a zebra”:
X
Encontraram-se dois traços
Numa larga estrada de vento.
Amor súbito, beijos e abraços
– um lindo cruzamento.

livro “Webcedário”, de Abc Dário
Bizâncio, 2011
[a partir dos 10 anos]
Paula Pina