Difícil e inglória é, muitas vezes, a tarefa de encontrar livros para pré-adolescentes e adolescentes que desejam outras leituras que lhes permitam escapar à voragem da literatura de aventuras (redutora), da literatura fantástica (excessiva), da literatura policial ou de mistério (de cabeceira), da literatura de costumes (desapontante), da literatura de auto-ajuda-e-conhecimento (moralizante e antiquada), da literatura de lista escolar obrigatória (imposta). Há ainda muitos jovens que passaram pela literatura de sucesso comercial (de “Harry Potter” e Lemony Snicket à coleção “Cherub”, da saga “Os túneis” aos “Náufragos do Holandês Voador” e à série “Vampiratas”, às “Crónicas de Spiderwick”, a “Ulysses Moore”, aos volumes mensais da coleção “365”, de “O diário de um banana” aos volumes do roedor “Geronimo Stilton”, passando por “Beija-mim”, “João Pastel” ou “André Cabelo-em-Pé” e pelas “Crónicas do Vampiro Valentim”) e que pedem agora algo mais, mas nada parece agradar.
Pais e especialistas arrepelam cabelos e enchem-se páginas sobre páginas acerca das carências, motivações, problemas e lutas com a leitura. Talvez porque “eles”, pais e especialistas, estão talvez mais próximos “deles” (dos “outros”) do que julgam. Como leem “eles”, modelos, adultos e professores? Qual a sua relação com a leitura? Não será ela também difícil, fragmentária, irreverente, libertária? Como se preparam enquanto mediadores de leitura, libertando-se de preconceitos e métodos? Serão leitores atentos e esteticamente exigentes, conhecedores apaixonados?
Se assistimos, desmoralizados e impotentes, à doentia banalização das artes em geral, e da literatura em particular, sobretudo através dos mass media, tendencialmente frívolos e assustadoramente redutores e sensacionalistas, que parecem confundir cultura e conhecimento com diversão comercial, geralmente em formato de entretenimento embrutecedor e deprimente, o que é um facto é que parece haver cada vez mais adultos a ler literatura para crianças e jovens. E, sim, há cada vez mais adolescentes a ler livros para adultos… Definitivamente, há cada vez mais gente a ler, e a ler mais e melhor; e há cada vez mais livros e excelentes autores a escrever – e a escrever bem para jovens. Neste jogo de delimitação territorial, as marcas fronteiriças tradicionais entre o que é ou não literatura com destinatários preferenciais esbatem-se ou desaparecem. Falamos sobretudo de transversalidade polissistémica (de mudança, de respeito, de partilha e de paixão…).
Pode parecer uma pergunta banal, mas é uma questão de fundo (dizem alguns estudos, que assinalam a leitura por prazer aos 15 anos como fator de sucesso e mobilidade social): mas que livros podem interessar aos pré-adolescentes, adolescentes e jovens?
Na realidade, continuamos a encontrar parte da solução junto dos inimitáveis “clássicos”: de Rudyard Kipling, Robert Louis Stevenson e Charles Dickens, a Jack London ou Anne Rice; de Ambrose Bierce a J. D. Salinger e Patrick Süskind ou até Stephen King; Roald Dahl e Agatha Christie podem perfeitamente figurar ao lado de C. S. Lewis ou J. R. R. Tolkien, Saki ou Daphne du Maurier, Richard Matheson, H. P. Lovecraft ou Anne Perry, Clarice Lispector, Mark Twain ou Oscar Wilde, Frances Hodgson Burnett, Melvin Burgess ou Malorie Blackman…
Quem quiser, terá sempre a fantástica tábua de salvação da banda desenhada, nem que seja começando pelas inimitáveis personagens de René Goscinny (Astérix, Lucky Luke, Iznogoud ou o Menino Nicolau), pelo Tintin, de Hergé, ou, para os mais crescidos, “Blankets”, de Craig Thompson, e “Persépolis”, de Marjane Satrapi. Mas também há os diários, as biografias, as letras de canções, as receitas culinárias, as revistas, a internet…
Sempre ao ritmo da prateleira, sem pretensões ou inibições, o Cria Cria deixa aqui algumas sugestões:
a obra do premiado e extraordinário David Almond, nomeadamente o imperdível “O meu nome é Mina” e o fabuloso (e assustador) “Que monstros fabricamos?”;
dentro do estilo diarístico, podemos apontar a jovem escritora Maggie Stiefvater com a trilogia a duas vozes “Shiver”, “Linger” e “Forever”;
ou, sobretudo pelo apelo da ilustração interativa e informal, repleta de doodles, “O diário de Cathy”, de Sean Stewart, Jordan Weisman e Cathy Brigg;
o encantador “A evolução de Calpurnia Tate”, de Jacqueline Kelly;
o divertido “Como treinares o teu dragão”, de Cressida Cowell;
os colossais e inovadores “A invenção de Hugo Cabret”, de Brian Selznick, e “O lar da Senhora Peregrine para crianças peculiares”, de Ransom Riggs;
Chris Priestley, com os seus verdadeiramente arrepiantes contos de terror;
André da Loba, Shaun Tan, Serge Bloch, Javier Sáez Castán, Bruno Munari ou M. Sasek com os seus álbuns sem idade;
e a lista pode continuar com John Boyne (“O rapaz do pijama às riscas” e o deliciosamente roalddahliano “A coisa terrível que aconteceu a Barnaby Brocket“, este com ilustrações de Oliver Jeffers);
com a inventividade comovente de “Extremamente alto e incrivelmente perto“, de Jonathan Safran Foer;
com Jonathan Franzen, na sua irónica e introspetiva “A zona de desconforto”;
ou ainda com a visão intensa e surpreendente de “Marcelo no mundo real”, de Francisco X. Stork.
Também em Portugal, a produção permanece imparável, graças a autores extraordinários como Ana Saldanha, Afonso Cruz, Álvaro Magalhães, Alice Vieira, Ana Pessoa, Carla Maia de Almeida ou Luísa Costa Gomes. Saliente-se os recentes “Os livros que devoraram o meu pai”, de Afonso Cruz, “Irmão Lobo“, de Carla Maia de Almeida, ou a recentíssima obra de Ana Saldanha, “Texas – Uma aventura no faroeste”, um espelho de vivências e incertezas adolescentes no microcosmos algo claustrofóbico de um centro comercial, um texto em que as palavras pequeninas e discretas das notas de rodapé devem ser lidas com a mesma intensidade e ironia.
Objetos de consumo? Efémeros ou intemporais? Obras de arte? Preciosidades acarinhadas, idolatradas ou recheio poeirento de caixas esquecidas? Íntimos e secretos? Públicos, tribais ou comunitários? Discutidos em fóruns online, deixados ou recolhidos em bookcrossing spots? Prazer ou terror? Mistérios e inquietudes? Bons, maus, péssimos, excelentes ou assim-assim, os livros e a palavra (mesmo que seja inicialmente a palavra parca, desajeitada) exercem ainda o seu supremo e maravilhoso poder da profundidade e da liberdade.
Paula Pina
Não podia estar mais de acordo. Os clássicos são, realmente, uma opção segura. Por outro lado, considero que escritores como John Green e John Grisham, com as publicações em português “Cidades de Papel” e “O miúdo advogado”, respectivamente, mostram uma vontade de alargar o seu público alvo.
Muito obrigada pelo seu comentário e pela pertinência das propostas complementares, Rita. São duas boas ideias, passíveis de ser acrescentadas à nossa lista…
Até breve,
Op.