Charles-Émile Reynaud (1844-1918), num acesso de raiva, deitou ao rio Sena as suas máquinas e filmes. Os filmes eram apenas películas perfuradas com imagens pintadas à mão, “desenhos em movimento” dançando em 50 metros de banda, perfazendo um total de 40 minutos de projeção por três bandas. As máquinas eram praxinoscópios. Quanto a Charles-Émile Reynaud, foi o fundador da moderna cinematografia, ao projetar no Museu Grévin, em Paris, e para pasmo das audiências, o seu Théâtre Optique, no dia 28 de outubro de 1892. A razão do acesso de fúria: o advento do cinematógrafo dos irmãos Lumière.
Curiosamente, do outro lado do Oceano Atlântico, no mesmo dia 28 de outubro de 1892, inaugurava-se aquele que é, hoje ainda, um símbolo imediatamente reconhecível, mesmo para qualquer distraído ou contrariado frequentador de salas de cinema: a estátua da liberdade, que inspiraria a imagem de marca da produtora e distribuidora Columbia Pictures.
Recordamos estas histórias no Cria Cria porque se celebra hoje o Dia Mundial da Animação, um evento simultâneo que envolve o intercâmbio entre instituições congéneres, a nível mundial, em mais de 50 países, e que em Portugal ganha expressão em múltiplas iniciativas, um pouco por todo o território, e numa programação vasta, centralizada pela Casa da Animação, Porto, na qual se destaca a produção nacional e o premiado Shaun Tan que, com Andrew Ruhemann, criou “The lost thing”:
Recordamos estas histórias no Cria Cria também porque nos lembramos muito bem do tempo em que não havia salas de cinema com filmes para crianças ou videotecas (haver bibliotecas com secção infantil era um luxo). Lembramo-nos ainda da televisão a preto e branco (e só para alguns), em que apenas um programa na RTP, anódina e asseticamente intitulado “Cinema de animação”, começou a divulgar, a partir de 1974 e durante 16 anos, milhares de obras do género. Os recursos eram escassos, mas havia variedade e ousadia. Por detrás do tão atacado “amadorismo” e do inglês arrevesado, havia a determinada paixão de um autodidata convicto – Vasco Granja -, com a chancela superior do balcão da Tabacaria Travassos, a garantia dos Armazéns do Chiado, os títulos académicos da Livraria Bertrand, a experiência formativa dos cineclubes e das prisões da PIDE. Foi com ele que pela primeira vez ouvimos falar de anime, devorámos Looney Tunes e Warner Bros., absorvemos animação experimental vinda de leste e oeste, descobrimos Peter Foldes e Norman McLaren. Havia convidados (pequenos e crescidos) e concursos. O que Vasco Granja fez com edição portuguesa da revista Tintin (1968) foi notável: escrevia, traduzia, respondia aos leitores. Continuamos a descobrir ainda hoje tudo o que vimos nessa altura. Continuamos a descobrir que tudo faz sentido. Gostaríamos que todas as crianças soubessem como se diz “Fim” em polaco. Nós sabíamos: “Koniec”.
Paula Pina