Aos seis anos, reproduzia as peças que o pai tocava no piano. Aos oito, começou a compor. Aos nove, deu o seu primeiro recital como pianista. O menino prodígio de aparência angelical em breve se mudaria para Viena com a família, graças a uma bolsa de estudos, tornando-se discípulo de Carl Czerny, em piano, e de Salieri, em composição. Aos dez anos, tocava as peças mais difíceis de Bach, Beethoven, Mozart, Cramer e Clementi, e improvisava com uma facilidade assombrosa. Em 1822, a sua primeira apresentação perante uma plateia vienense resultou num êxito absoluto de público e de crítica. Aos 12 anos de idade, Liszt era um ídolo.
Numa carta datada de maio de 1832, Franz Liszt (22 de outubro de 1811 – 31 de julho de 1886) escreve ao seu aluno e amigo Pierre Wolff: “Há duas semanas que o meu espírito e os meus dedos trabalham como loucos [sic] – Homero, a “Bíblia”, Platão, Locke, Byron, Hugo […], Beethoven, Bach, Hummel, Mozart, Weber, todos eles estão à minha volta. Estudo-os, observo-os, devoro-os com entusiasmo e, para além disso, exercito-me quatro a cinco horas […]. Ah! Se não ficar louco, quando regressar, vais ter perante ti um artista!”. Por ser estrangeiro, Liszt vê recusada a sua candidatura ao Conservatório de Paris. Torna-se então aluno de composição de Anton Reicha e Ferdinando Paer. E quem tiver ainda lá por casa um piano Érard, saiba que o construtor, o famoso Sebastien Érard, contratou Liszt para divulgar os seus novos modelos.
Henri Lehmann, “Franz Liszt”, 1840
Retemos até hoje algumas histórias acerca do pequeno Franzi, pormenores que nos fizeram vê-lo não apenas como uma personagem prodigiosa, mas como um menino, talentoso, alegre, curioso e disparatado, atormentando os seus pais e professores com as mais inesperadas acrobacias e experiências. Conta-se que um dia, tendo descoberto como o seu pai manipulava pequenas quantidades de pólvora para a caça e para diversos outros usos domésticos, resolveu experimentar o efeito que obteria se lançasse no forno da cozinha uma maior quantidade. A explosão foi apenas assustadora e vistosa, felizmente para o autor da proeza, que foi projetado para o chão, incólume. Outro dos divertimentos de Franzi consistia em criar dedilhações loucas para as peças que Czerny o mandava estudar, deixando perplexo o seu pai, que assumia que o prestigiado professor seria amiúde acometido de delírios técnicos estapafúrdios. Noutra ocasião ainda, frustrado com os inglórios esforços para tocar décimas com as suas mãos infantis, Liszt foi apanhado segurando um imenso facalhão de cozinha, prestes a golpear as membranas entre os polegares. Numa época em que a criança prodígio estava na moda, muitos aspirantes a pianistas, e suas famílias e mentores, estavam dispostos a tudo para ultrapassar dificuldades técnicas, inclusivamente a recorrer à mutilação das mãos, cortando as membranas interdigitais ou submetendo-se a dolorosas máquinas de “modelar dedos”, como o “finger tormenter”, que terá arruinado a mão de Robert Schumman, por exemplo. Décadas depois, Liszt escrevia a uma das suas alunas: “My dear young lady: I beg you to think no more of having the barbarous finger-operation. Better to play every octave and chord wrong throughout your life than to commit such a mad attack upon your hands. With best thanks, I sign myself yours respectfully. F. Liszt”.
Liszt correspondia ao estereótipo do compositor místico e caricatural, de rosto fantasmagórico, que escrevia para si próprio peças que exigiam acrobacias impossíveis. “Uma figura excessivamente alta e magra, uma face pálida com olhos verde-mar que brilhavam com flashes rápidos, como ondas em chamas… um andar indeciso, parecendo deslizar mais do que tocar com os pés no chão, uma aparência distraída e inquieta, como a de um fantasma prestes a regressar à escuridão”, assim o descreve Marie d’Agoult. Quarenta anos mais tarde, Amy Fay, uma das suas alunas, escreve: “A sua boca revira-se para cima nos cantos, o que lhe confere uma elaborada e mefistofélica expressão quando sorri, e toda a sua aparência e modos têm uma espécie de elegância jesuítica e à-vontade… Ele é todo espírito, mas metade do tempo, pelo menos, é um espírito trocista… Ele é bastante alto e estreito… faz-me pensar, antes de tudo, num mágico de outros tempos, e senti que, com um toque da sua varinha, ele poderia transformar tudo.”
Liszt transformava mesmo tudo aquilo em que tocava: as passagens simples surgiam dobradas em terceiras e oitavas; os trilos simples metamorfoseavam-se em trilos em sextas; tocava décimas com a facilidade com que os restantes tocariam oitavas e, mais, sequenciava-as. Movendo-se pelos salões aristocráticos, mas fascinado pelos ciganos, homem ardente nas suas paixões humanas, leitor ávido e profundamente religioso (tomou ordens franciscanas), Liszt era um virtuoso, mas também um pedagogo extraordinário. Não tinha método, nem sistema didático, nem técnica específica. Não dava conselhos. Entregava-se como modelo aos seus alunos: a observação direta do modo como as mãos de dedos incrivelmente longos pousavam no teclado, a sua dedilhação única, o modo como usava o pedal, a interpretação mágica que oferecia, valiam mais do que todos as escolas, métodos e técnicas. “Technique should create itself from spirit, not from mechanics”, afirmava. Não cobrava nada pelas lições e recebia alunos de todo o lado, respeitando a sua individualidade, como o provam múltiplas gravações. “O primeiro dever do professor é tornar-se desnecessário. O segundo dever do professor é ensinar os alunos a ensinarem-se a si próprios.” Na verdade, poucos como ele entendiam toda a dimensão etimológica do termo “educare” – encaminhar. A cidade de Weimar enchia-se quando Liszt lá estava para ensinar. E enchia-se não apenas de alunos ansiosos por ouvir e ser ouvidos. A cidade enchia-se de sons de teclados, em todas as ruas, em todas as praças, becos, esquinas e salões. A situação chegou a tal ponto que a câmara promulgou um edital proibindo tocar com as janelas abertas (os transgressores seriam oficialmente notificados e multados no valor de três marcos).
Num ano em que abundam gravações cedendo ao marketing das efemérides, destacaríamos “The Liszt concertos”, da Deutsche Grammophon, gravados ao vivo com a Staatskapelle Berlin, e em que a equilibrada serenidade de Pierre Boulez redimensiona os contrastes composicionais expressivos rapsódicos do compositor. Esta é uma gravação em que Daniel Barenboim injeta de cromáticas ilusões poéticas a inultrapassável técnica pianística (preparem-se, todos os pais e filhos amantes do triângulo, para o imperdível solo no “Piano concerto nº 1”).
Liszt detestava crianças prodígio. Ironicamente, um tataraneto recebeu a sua herança genética genial e tornou-se num menino prodígio do piano. Chama-se Michael Andreas Haeringer, e nasceu em Barcelona, filho de pais alemães. Brinca com peluches e gosta de desenhos animados.
CD “The Liszt concertos”, de Daniel Barenboim e Pierre Boulez com a Staatskapelle Berlin
Deutsche Grammophon / Universal, 2011
[a partir dos 4 anos]
Paula Pina