Foi em Tanglewood que Leonard Bernstein (25 de agosto de 1918 – 14 de outubro de 1990) fez a sua formação e iniciou a carreira de maestro. E era a Tanglewood que voltava sempre, para ensinar, mesmo em período sabático, em detrimento de tournées agendadas e concertos esgotados nas salas mais importantes das grandes capitais do mundo. Também em Tanglewood terminou a sua carreira, em 1990.
Talvez estivesse encantado, como Nathaniel Hawthorne, autor de “Tanglewood tales” (1853), volume de contos cujo título mágico nomeia, hoje ainda, o centro educativo e cultural da Boston Symphony Orchestra. Veem-se as montanhas Berkshire, ao fundo, e o lago Stockbridge Bowl espreita por entre as moitas e extensos relvados. O espaço está serenamente salpicado de cadeiras de lona e guarda sóis. De vez em quando, um pequeno grupo abre uma cesta de piquenique. Sob a sombra, alguém se curva sobre uma partitura. Chegam-nos sons distantes de cordas. Os edifícios parecem hangares ou celeiros gigantes, acolhendo quem chega e abrindo-se para o exterior, inundados de luz durante o dia, iluminando os relvados à noite. As pessoas, de todas as idades, trazem as suas cadeiras e mantas, enquanto ecrãs gigantes projetam imagens da orquestra.
Bernstein fundou institutos, escolas e uma classe mundial de prática orquestral, no Schleswig Holstein Music Festival. Fundou o Pacific Music Festival, em Sapporo, Japão, importando o modelo de Tanglewood. Havia quem o encontrasse, fazendo o seu jogging alegremente, ou cruzando os caminhos serpenteando entre os relvados de Tanglewood no seu Mercedes beige descapotável, acenando aos estudantes. “Sou um rabino disfarçado”, dizia, espreitando por cima das meias lentes dos óculos. Estava sempre a pregar, imbuído de uma espécie de espírito missionário, que considerava mais importante do que tudo o resto. Usava uma camisola desportiva azul bebé, jeans, botas de cowboy, e um lenço vermelho espreitava-lhe do bolso. Os seus elogios eram abundantes: “Great, but I want it twice as great!”. A sua energia levava-o muitas vezes a um exagero nos gestos, com meneios e saltos, rapidamente tornados moda em passos de dança, como o famoso “Lenny’s jump”. Mas a sua exigência, rigor analítico, fervor e perspicácia crítica e psicológica eram ainda mais extraordinárias: “Regra número um para quem toca em grande orquestra: é tudo música de câmara!”. Leonard Bernstein começara a sua carreira de maestro em 1943, substituindo à última hora um Bruno Walter engripado. Tocava-se o “Dom Quixote”, de Richard Strauss. Mais tarde, quem olhasse com atenção, veria que Bernstein usava sempre os botões de punho do seu mentor, o maestro Serge Koussevitzky.
“In my end is my beginning”, escreveu Bernstein na carta que enviou aos amigos convidando-os para a performance de gala em benefício do Tanglewood Music Centre, coincidindo com o seu 70º aniversário. T. S. Eliot nos “The four quartets” escrevera, em “East Coker”: “In my beginning is my end”. Nas Harvard Lectures, enquanto Charles Eliot Norton Professor of Poetry, Leonard Bernstein falava de música e linguagem. Na conferência “The principle of hope”, proferida no 13º aniversário do Berkshire Music Centre, a esperança é o tema. Bernstein foi incansável, impulsionado pela necessidade imperiosa de partilhar a sua paixão pela música, na afirmação da esperança, na certeza de que, através das artes e da música, poderíamos tornar o mundo num lugar melhor: “We who were sitting there in 1940 were a generation of hopers.” Ou “It’s the artists of the world, the feelers and the thinkers, who will ultimately save us, who can articulate, educate, defy, insist, sing and shout the big dreams.”
Hoje, dia 14 de outubro de 2011, em Tanglewood, a Orquestra irá tocar um bailado (ou poema sinfónico), obra rara, baseado num conto de fadas: “The wooden prince”, de Bela Bartok. Nós, aqui no Cria Cria, vamos pegar numa das obras escritas por Leonard Bernstein: “O mundo da música”, na edição da Livros do Brasil, com tradução de Manuel Jorge Veloso. Depois, vamos sentar-nos e rever alguns dos seus inesquecíveis programas “Young people’s concerts”. Claro que a tecnologia televisiva usada era ainda primitiva – há distorções de imagem e o som não é brilhante (geralmente mono, ou remisturado, exceto nos cinco últimos concertos, já em stereo). Mas quem se importa? Mesmo a preto e branco, mesmo com desfocagens, há um discurso musical pejado de poesia e emoção, há clareza e técnica, há interatividade e há perguntas complexas e divertidas, há surpresa e variedade, clássicos conhecidos e compositores recentemente descobertos, há folk e música latina, da Broadway aos Beatles. Mas há, sobretudo, a presença e a voz de um músico, um verdadeiro contador de histórias apaixonado.
Inicialmente aos sábados de manhã, os “Young people’s concerts” foram transmitidos durante três anos na CBS, em horário nobre, passando depois para os domingos à tarde. Duravam cerca de uma hora. Era pouco. Por lá passaram convidados ilustres, como Christa Ludwig ou Walter Berry, um Gunther Schuller muito novinho, uma Natania Devrath cantando Villa-Lobos, e até uma injustamente desconhecida Marni Nixon (que dobrava as vozes cantadas de Natalie Wood, Audrey Hepburn ou Deborah Kerr). Não eram concertos comentados vulgares, tão na moda em Portugal e tantas vezes tão mal engendrados. Os “concertos para jovens” de Leonard Bernstein eram verdadeiras aulas de apreciação estética musical. E, graças a ele, muitos aprenderam a gostar de música.
A procissão com o corpo de Leonard Bernstein percorreu as ruas de Manhattan até ao cemitério de Green-Wood, Brooklyn. Pelo caminho, passaram por um edifício em construção. Todos os trabalhadores pousaram baldes, pás e martelos, tiraram os capacetes amarelos e acenaram, dizendo: “Goodbye, Lenny!”.
Paula Pina