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Regra geral, o principal objetivo das adaptações infantis ou juvenis dos clássicos da literatura é estimular a leitura de textos canónicos. Todavia, se assim é, cabe-nos perceber o que terão estas obras canónicas de tão especial que, apesar de não serem explicitamente destinadas a essa audiência em particular, a ela devam ser oferecidas. Durante a nossa infância, nunca a menor dúvida ensombrou aquele que era considerado um processo de descoberta natural e obrigatório: os clássicos iriam mais cedo ou mais tarde ser lidos, em edições de bolso ou em pesadas encadernações adornadas a ouro, em volumes de capas esfiapadas pelo uso ou em requintadas edições ilustradas, desde as epopeias clássicas até aos “clássicos” da Vampiro. E esta era uma certeza.
Lembro-me de olhar gulosamente para as capas vermelhas enceradas das obras completas de Eça de Queiroz da Livros do Brasil enquanto me passavam para as mãos “A morgadinha dos canaviais” e “Uma família inglesa”, de Júlio Dinis, aos nove anos, alternando com os “clássicos” de Enid Blyton, de Charles Dickens, com Agatha Christie e “As mil e uma noites” pelo meio, e ainda, claro, “A ilha do tesouro” e “Uma agulha no palheiro”, juntamente com Ellery Queen, e “Les aventures de Tintin” no original francês. Avançava-se depois para os russos, com Tolstoi e Dostoievski, para Jane Austen e irmãs Brontë, e ainda Sófocles, com o “Édipo Rei”. Como é (era mesmo!) óbvio, antes já tínhamos digerido as “Fábulas” de Esopo e de La Fontaine, todos os contos de Perrault, dos irmãos Grimm e Hans Christian Andersen, todos os contos de Sophia de Mello Breyner Andresen e Matilde Rosa Araújo, os contos de Oscar Wilde e os contos populares da Ásia, na tradução de Pedro Tamen, na edição com a chancela da UNESCO. O “Dom Quixote”, de Cervantes, era sempre esperado com grande expetativa, assim como o Jonathan Swift de “As viagens de Gulliver” e os volumes de Alexandre Dumas, pois não perdíamos um episódio dos desenhos animados.
Só bastante mais tarde me apercebi, numa visita à biblioteca da escola com a professora de português, que havia versões “adaptadas para a minha idade”. Aliás, tinha passado uma imensa vergonha na aula, depois da leitura em voz alta de um excerto do manual com “As pupilas do Senhor Reitor”. Na ingenuidade dos meus dez anos, a resposta a uma pergunta de interpretação fora dada com base na leitura da obra integral, incluindo por isso a menção ao nome de uma personagem, omitido no excerto. Fora por isso publicamente criticada e a resposta penalizada, para minha grande estupefação e dor.
As adaptações que me foram parar às mãos naquela altura sempre me pareceram infantilizações desnecessárias de uma linguagem que, apesar de por vezes desafiadora ou nem sempre totalmente inteligível, nunca me parecera inacessível. O texto surgia simplificado, mas muito menos cativante; as passagens mais aliciantes (e potencialmente mais corruptoras também) desapareciam misteriosamente. Nunca me preocupei com o facto de saltar frases, parágrafos, ou até páginas inteiras nos originais; nunca me atormentou a leveza com que avançava capítulos, voltava atrás, relia, ignorava ou decorava passagens; nunca me senti penalizada por começar pelo fim, deixar a meio e repegar mais tarde ou abandonar por completo; nunca fui censurada por ler muitas coisas ao mesmo tempo, de forma assistemática e selvagem, ou por decidir não ler. Nunca me passou pela cabeça, ou pela cabeça dos adultos que me acompanhavam, julgo eu (dotados, diga-se de passagem, de uma cultura literária mínima ou inexistente), censurar os meus métodos de leitura. E nessa época ninguém falava ainda dos “direitos inalienáveis do leitor” de Daniel Pennac…
O interesse pela leitura dos clássicos e de obras de autores consagrados é ditado, em primeiro lugar, pelas instâncias educativas (famílias, educadores, professores), governamentais, autorais e editoriais. Mas as crianças e jovens que leem verdadeiramente, fazem-no simplesmente “porque sim”. Não exibem preocupações programáticas, filosóficas, teórico-literárias, linguísticas, autorais ou simbólico-culturais. Logo, os prefácios, prólogos e notas das adaptações, mesmo que chamem reiteradamente a atenção para as vantagens da leitura do original, mesmo que apontem diligentemente para a necessidade de descoberta de um autor em toda a sua dimensão artística, estarão condenadas ao esquecimento ou serão pura e simplesmente ignorados.
[continua amanhã, 3 de outubro]
Paula Pina