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Eça de Queiroz e o regresso às aulas [1ª parte]

Eça de Queiroz, nas suas “Cartas de Inglaterra”  (1903), escreveu: “Eu às vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres crianças. Creio que se lhes dá Filinto Elísio, Garção, ou outro qualquer desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação pela leitura. Isto é tanto mais atroz quanto a criança portuguesa é excessivamente viva, inteligente e imaginativa. Em geral, nós outros os portugueses só começamos a ser idiotas – quando chegamos à idade da razão. Em pequenos temos todos uma pontinha de génio: e estou certo que se existisse uma literatura infantil como a da Suécia ou da Holanda, para citar só países tão pequenos como o nosso, erguer-se-ia consideravelmente entre nós o nível intelectual.” O texto de Eça continua, referindo o exemplo inglês e lamentando o facto de se “sepultar” a inteligência dos “nossos filhos sob grossas camadas de latim”, de retórica e “de lógica (de lógica, Deus piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o monumento da camelice!”.

 

 

Eis-nos chegados a setembro. Os pais mais previdentes consultaram logo no final do ano letivo as listas de manuais escolares e fizeram as respetivas encomendas, não fosse dar-se o caso de os ditos manuais esgotarem, como frequentemente acontece, não obstante supliciantes e atempadas diligências. Outros ainda (ou os mesmos) terão enfiado, talvez não tão subrepticiamente quanto seria desejável, entre os DVDs, CDs e gadgets de última geração atulhados no fundo das mochilas de férias dos seus púberes herdeiros, algumas das obras de leitura obrigatória ou recomendada no Plano Nacional de Leitura. Alimentados quiçá pelo fogo vago da esperança de umas férias tão relaxantes quanto educativas, planearam leituras em família, acampamentos culturais, umas páginas de um clássico com salpicos de piscina, umas antologias para as horas da digestão, uma ou outra peregrinação ao alfarrabista da terra, uma passeata pela feira do livro da avenida. Adquiriram ainda uns “kits” de cartas-“quiz” de ciências, história e língua portuguesa com a chancela de faculdades credenciadas, e uns livros com imagens para completar, desenhar ou colorir, para os pequenotes não iniciados nos mistérios da decifração da escrita.

Eis-nos em setembro. Folhetos de hipermercados atulhavam a caixa de correio anunciando distintas promoções, descontos estonteantes, saldos piramidais. A lista de material escolar cresce, tal como cresceram pés, pernas, braços, cabelos. É preciso esvaziar e limpar armários, apertar livros velhas nas prateleiras para nelas se aconchegarem os novos. Ei-los que chegam, então, em invólucros de plástico. Um título chama-nos a atenção: “Seis contos de Eça de Queirós recontados por Luísa Ducla Soares”.

Publicada pela Terramar em 2000, por  ocasião do centenário da morte de Eça de Queiroz, esta adaptação surge como oferta, agregada aos manuais da Porto Editora destinados ao 7º ano de escolaridade. Verificamos também que é, de novo, esta adaptação que integra a lista de obras de leitura recomendada no Plano Nacional de Leitura para o 5º ano de escolaridade. Mas no que se repara mesmo é no facto de que é a adaptação que figura na lista de leituras orientadas ao programada para o 9º ano, e não mais a obra original, “Contos”, de Eça de Queiroz.

Quando, e se, ultrapassada a perplexidade inicial, seguida de uma eventualmente precoce perda de compostura, alguns dos pais a que nos referimos atrás irão justamente interrogar-se. Mas muitos outros suspenderão a interrogação, substituindo-a por um suspiro e por um encolher de ombros desolado, primeiro numa aceitação murmurada dos “novos tempos, novas modas, novas leituras, eles é que sabem”, silenciosa depois de mirada a chancela de um qualquer respeitável ministério, em forma de autocolante.

Estamos conscientes de que o fenómeno de adaptação literária não é novidade, pelo menos desde Aristóteles. Sim, sempre vivemos rodeados de adaptações, e até de adaptações das adaptações, inclusivamente de adaptações das adaptações das adaptações: quem não conhece aqueles livrecos que são a tradução portuguesa de uma versão espanhola de uma edição inglesa de uma adaptação francesa de um original alemão? Más ou boas adaptações, género subsidiário, menor e menorizado, adaptação “certificada” ou não, reconhecida editorialmente, literariamente meritória ou pedagogicamente escrutinada, é evidente que muitas destas produções podem ser ligadas a modelos e práticas, culturais ou educativas, de teor político.

Que posição ocupa hoje a adaptação literária na literatura infantojuvenil no contexto português? Quais os critérios aplicados na seleção dos textos a adaptar? Que intenções comunicativas, educativas ou didáticas estão na base desses critérios? Quais as estratégias de que se serve o adaptador, quais os mecanismos de re-criação literária? Que papel fica reservado para o autor? Que relação de pertença cria o texto original com o autor-adaptador? Haverá já estudos, ou práticas experimentais com amostras mais ou menos representativas, que nos permitam aferir a receção destes textos junto dos seus destinatários e em diferentes contextos? Ficarão de facto os jovens leitores mais motivados? Tornar-se-ão eles mais leitores?

 

[continua amanhã, 2 de outubro]

 

Paula Pina

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