“Como é que uma galinha…”, da autoria de Isabel Minhós Martins e com ilustração de Yara Kono, publicada pela Planeta Tangerina, não é uma história. É uma pergunta. Ou melhor, é uma pergunta gigante, que se vai desdobrando em outras perguntas encaixadas na primeira e, se quisermos, reforçando a primeira: “como é que uma galinha…?”, “mas como?”, “como?”. Na realidade, a interrogação sobre um dos animais mais vulgares e mais simbólicos do mundo acaba por se assemelhar a uma alegoria sobre os paradoxos da natureza. Os defeitos ou caraterísticas da ave, os seus hábitos e incapacidades são colocados em evidência. Ao mesmo tempo, expressa-se a perplexidade causada por aquele que é considerado o seu mais notável feito: pôr ovos. “Como é que tanta Matemática, / Tanta Biologia, / Tanta simplicidade, / Tanta sabedoria… Saem do rabo de uma galinha?”
A natureza tem destas coisas. Mas até que ponto se resgata de facto a dignidade da galinha? Até que ponto nos libertamos do estereótipo da galinha-objeto, da tal galinha-máquina-poedeira das linhas de produção industrial, a galinha depenada, pesada, embalada, catalogada, enfileirada? Da galinha procriadora de um artigo de consumo humano, o salvífico filho-ovo? Por vezes, algumas tentativas de humor resvalam para esta visão mais discutível do animal, nomeadamente no final do livro. A galinha é redimida, enquanto animal cultural e convencionalmente desvalorizado, porque de dentro dela saem ovos, pequenas obras de arte, estética e gastronomicamente perfeitas. Apesar do seu ar “feinho” e “pouco inteligente”, muito “tonto, tonto, tonto”, não obstante ser “pitosga”, “desajeitada”, “mal jeitosa”, “ociosa”, chegámos à conclusão de que a galinha, não é, simplesmente, uma galinha, mas sim “uma máscara”, “um verdadeiro agente secreto / Que guarda em si um segredo: Um pequeno planeta / Que traz a vida a reboque. / Mas o mais importante de tudo… é que não falte um bitoque!”…
O texto de Isabel Minhós Martins torna-se auditivamente interessante devido à utilização das rimas, das anáforas e dos paralelismos, e, evidentemente, pela pontuação expressiva. Todavia, é na delicadeza irónica das ilustrações que se encontra o ponto forte do livro, desde a escolha de materiais e cores, às colagens recorrendo a símbolos, códigos, selos, etiquetas ou datas de validade que encontramos nas embalagens de ovos. Apesar de reconhecermos valor pedagógico ao texto, às referências culinárias ao ovo e ao tópico da utilidade da galinha para o ser humano, temas sempre explorados em âmbito educativo pré-escolar, a obra vale sobretudo pelos detalhes da ilustração: desde os objetos decorativos alusivos até à presença de outros animais (recordando a fábula da galinha ruiva), passando pela galinha que espirra e pela sugestão de velocidade do movimento de braços batendo as claras em castelo, até à incongruência de algumas galinhas dobrarem as articulações das patas para a frente, o que lhes dá, assinale-se, um toque muito feminino…
Apesar da ironia evidente em algumas passagens, e do sucesso, confirmado em risotas, que decerto se obterá junto dos mais pequenos graças às reiteradas referências ao “cocó”, vale a pena contar outras histórias que a ilustração conta. Conhecem aquela do menino que se mascarou de galinha e entrou no galinheiro para roubar um ovo, mas que acaba perseguido pela galinha e seus pintainhos? Não? Então tomem bem atenção à capa e contracapa. E já ouviram a história da galinha glutona que entrou à socapa num lindo couval bem português, e que, de guardanapo ao peito, devorou e debicou todos os pés de couve verdinha, escapulindo-se depois, de papo a abarrotar? Também não conhecem? Pois então, vejam com cuidado as guardas iniciais e finais.
livro “Como é que uma galinha…”, de Isabel Minhós Martins com ilustrações de Yara Kono
Planeta Tangerina, 2011
[a partir dos 3 anos]
Paula Pina