Monthly Archives: September 2011

Rubik’s Cube, o cubo mágico

Chegavam e sentavam-se no muro de cimento, decorado com azulejos partidos por alguma turma de Educação Visual graças à iniciativa de um professor mais preocupado com a cinzenta fealdade do recinto escolar. Traziam-nos dentro das mochilas verde-tropa, de presilhas de couro encaracoladas, duvidosamente decoradas a caneta Bic azul (normalmente com os símbolos da paz, de grupos anarquistas ou radicais, bandas hard rock ou heavy metal). Outras vezes, extraíam os seus formatos suspeitos dos bolsos dos kispos e das parkas, das camisolas de malha tricotadas pelas mães, e até do peitilho das jardineiras e dos calções de ginástica.

 

 

De início, eram poucos. Alguns, eleitos, aceitavam uma pastilha Gorila como suborno e partilhavam o seu novo, intrigante e viciante brinquedo. Passavam-no de mão de mão, com tempo contado. Trocavam-se trabalhos de casa, garrafas de leite com chocolate da Ucal, beijos e até passes sociais. Depois, passaram a ser mais. Formaram clubes, organizaram concursos na sala de convívio com o aval dos diretores de turma. Deixaram de ser tão misteriosos. As versões de plástico 3x3x3, seis faces, seis cores, conquistaram as famílias mais reticentes, aplaudia-se o génio nos irmãos mais novos que resolviam com uma facilidade ofensiva os problemas de configuração que deixavam os mais velhos boquiabertos.

 

 

De quando em quando aparecia um Pyraminx ou um Skewb. Raramente, um MegaMinx ou um Skewb Diamond. Um pouco por todo o lado, o seu deslizar crocante, as coreografias de cores, a dança dos dedos, a cabeça ligeiramente inclinada, as breves pausas de avaliação entre movimentos: nos intervalos das aulas e debaixo da carteira, à socapa durante as aulas mais aborrecidas; nas paragens de autocarro e durante as viagens de comboio; ou noutros locais insuspeitos ou inusitados, como sanitários, repartições, orquestras, esquadras, barbearias. Entrava-se na papelaria e saía-se com a caderneta de cromos; havia os concursos na televisão e ouvia-se na rádio a canção da Lara Li. Criaram-se amizades duradouras e romperam-se ligações intocáveis por causa da febre do cubo mágico.

 

 

O cubo mágico começou por ser um protótipo de madeira, desenhado como passatempo por um apaixonado da geometria, o professor Erno Rubik, em 1974, para demonstrar aos seus alunos de arquitetura e design de interiores, da Academia de Artes de Budapeste, o princípio do tridimensionalidade aplicada. Lançado na Hungria em 1977, sucesso da Feira de Brinquedos de Nuremberga em 1979, o cubo mágico tornou-se sucesso mundial de vendas, transformando o seu surpreendido criador no primeiro milionário empresarial socialista. Em três anos, uma em cada três pessoas na Europa e Estados Unidos se tornara o fanático ou o frustrado possuidor de um cubo mágico.

O princípio matemático subjacente ao brinquedo-invento-quebra-cabeças é ainda alvo de investigação recente no M.I.T.. Das 43 252 003 274 489 856 000 quintiliões de possibilidades que os 26 cubinhos, 54 faces e seis cores oferecem, uma apenas será a chave. Na página de tecnologia do site da B.B.C. News, podemos ficar a saber que 30 anos após o aparecimento do cubo, uma equipa de cientistas prova que a solução possível até agora contempla um mínimo de 20 movimentos. Afirma Erik Demaine, um desses cientistas: “A minha vida sempre se direcionou para a resolução de problemas que eu considero divertidos. É sempre difícil dizer logo na altura o que é que vai ser importante. Estudar números primos foi só uma atividade recreativa. Não teve importância prática nenhuma durante centenas de anos, até à chegada da criptografia.”

 

 

Ícone dos anos 80, o cubo mágico inspira ainda cientistas e fanáticos, mas também designers e artistas (como o Cube Works Studio ou os Space Invaders, que constroem retratos de inspiração pop com cubos mágicos). O cubo mágico brilha ainda na publicidade (como no anúncio do Cubo versus Playstation) ou no cinema (em cameos em “Super 8”, de J.J. Abrams, ou em “Os bem-amados”, de Christophe Honoré, que ontem estreou em Portugal, só para citar dois exemplos muito recentes). Criou-se até uma pastilha cúbica e uma linha de cosméticos inspiradas no seu desenho único.

 

 

Nunca nos interessou descobrir a solução mais fácil do enigma. No You Tube abundam videos que explicam como o resolver. Para quem não resistir à tentação, eis um video amador com uma abordagem que se destaca pela originalidade:

 

 

Só no ano passado se estabeleceu um novo recorde mundial: o tempo mais rápido está agora nos 5,66 segundos. O campeonato mundial está à porta: entre 14 e 16 de outubro, em Banguecoque, Tailândia. Se tiver crianças com idade igual ou inferior a quatro anos, inscreva-as – parece que há imensos bebés que são absolutamente geniais na resolução do cubo mágico. Nas suas mãozinhas, um dos maiores mistérios matemáticos universais até parece uma brincadeira de crianças.

 

Paula Pina

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Fazedor de Matérias, Criatura #004

 

– Bzzzoinc?
– Falácia nº 29146, assumo.
– Os sonhos nascem da cabeça.
– 13%6tg32@hj…
– Estou a voar. Lá, lá, lá, lá, lá!
– Não bebas essa porcaria.
– Um feixe de complexidades, tudo o que é partes sem todo!
– Blá! Blá! Blá!
– … Rappellez-moi!… peu connu… merveille.
– Pling, ziiim?
– Quando é que consegues fazer o que te explico?
– Esquerda, cima, direita, direita, frente, frente, salta, salta, salta…
– Got it! Yes! Passei de nível.

 

Paula Pina, a partir de uma ilustração de Cesária Martins

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Madalena Matoso [ilustradora convidada, outono 2011, semana 2]

 

Dando continuidade ao nosso ciclo Ilustrador Convidado, neste outono de 2011 estamos a receber Madalena Matoso, uma das criadoras mais relevantes no campo da ilustração infantojuvenil portuguesa da última década, mas também uma designer brilhante, editora e fundadora da Planeta Tangerina, casa que publicou muitos dos seus mais notáveis trabalhos. Semanalmente, Madalena Matoso aqui responderá a uma das nossas perguntas e aqui apresentará uma sua ilustração de que se orgulhe particularmente.

 

Cria Cria: Sente o seu cérebro crescer quando está a desenhar ou quando está a criar alguma coisa?

Madalena Matoso: Às vezes parece que se abrem portas e alçapões dentro do labirinto que é o nosso cérebro. No início de alguns trabalhos, há uma espécie de “nada”, e depois as coisas vão ganhando forma de uma maneira que não estávamos à espera. Essa passagem do “nada” a “alguma coisa” é uma das coisas de que mais gosto quando estou a trabalhar. O desenho, muitas vezes, é o que nos ajuda a encontrar esses quartos cheios de ideias que estão dentro do nosso cérebro. Outras vezes, basta olhar para alguma coisa quando estamos a andar de carro. Outras vezes, não sabemos mesmo de onde vêm as ideias.

 

ilustração inédita (2009)

 

Madalena Matoso: Esta colagem foi uma experiência que fiz para um trabalho, mas que nunca chegou a ser publicada. Era a imagem para um serviço educativo que tinha como público as famílias, e eu aproveitei para explorar a ideia dos retratos de família (pelos quais tenho alguma obsessão). Gostava da ideia de brincar com o formalismo que normalmente há nestes retratos, de perceber/inverter as relações dentro do grupo… Como as pessoas tinham de estar muito paradas para tirar o retrato, estão quase sempre com um ar muito sério, mesmo as crianças. Pintar por cima e colar elementos extra, era uma forma de brincar com essa seriedade.

A família da minha mãe tem álbuns de fotografias lindos (muito bem organizados pela minha avó), que sempre me fascinaram. Vê-los era quase como ler um álbum ilustrado: tentar perceber as histórias por trás daquelas caras, perceber quem era quem. Mas as fotografias destes álbuns são muito mais informais. Havia fotografias na praia, nos passeios. Não havia aquela tradição de “ir ao fotógrafo” (provavelmente porque havia fotógrafos – amadores – lá por casa).

Assim, para este trabalho, por não ter retratos formais nos álbuns lá de casa, andei a colecionar retratos de famílias que eu não conhecia e dei por mim a olhar para aquelas caras e a pensar no que teria acontecido àquelas pessoas. Os retratos tinham congelado aqueles momentos, mas o tempo continuou a passar. As crianças teriam crescido, casado, ido viver para a cidade, emigrado,… Teria havido algumas doenças. Quase todos teriam morrido (comecei a fazer contas, e as meninas, se fossem vivas, teriam mais de cem anos). Tive pena que tivessem de morrer (como quando temos pena das coisas que acontecem nos filmes ou nos livros). Pareceu-me um desperdício, muita beleza desperdiçada.

Concluindo, a ilustração acabou por ficar na gaveta mas todo o processo abriu portas para caminhos novos e estranhos, o que é sempre bom.

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Celebrando 75 anos do nascimento de Jim Henson

 

“The Muppet show” completou 35 anos neste mês de setembro. Antecipando o muito aguardado filme, “The muppets”, com estreia em Portugal prevista para fevereiro de 2012, celebramos hoje o aniversário do criador dos fantoches mais amados de sempre, Jim Henson (24 de setembro de 1936 – 16 de maio de 1990), com uma seleção de videos. Alguns parodiam canções famosas, temas musicais clássicos, com interpretações fabulosas (ou bastante duvidosas?):

 

 

Sempre podemos preferir arranjos recentes, versões diferentes, pastiches contemporâneos e coreográficos da banda sonora original, como este videoclip:

 

 

Outros videos recordam-nos momentos altos da série e as intervenções hilariantes de personagens inesquecíveis (algumas evidenciando graves problemas de foro psiquiátrico ou demência confirmada): o sapo Cocas, a Miss Piggy, o Animal, o Gonzo, o Fozzy, o Cozinheiro Sueco, a Águia, o cientista maluco, os velhos rezingões…

 

 

Outros ainda, revisitam cenas divertidas (vergonhosas?) com convidados famosos, como Peter Sellers, Gene Kelly, Roger Moore, Johnny Cash ou Debbie Harry.

 

 

Porque não recordar a interpretação original do Cocas da canção “Bein’ green”?

 

 

E que tal espreitar os trailers do novo filme?

 

 

Paula Pina

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Ayrton Senna

 

As crianças brincavam pela casa, empurrando-se à vez, dentro de uma caixa de cartão pintado, a cabeça amparada por um par de almofadas de rendinhas, luvas improvisadas, um prato de plástico de piquenique servindo de volante.
– Então, o que querem ser quando forem grandes?
O menino afirmou logo:
– Piloto de Fórmula 1.
Uma menina pensou e respondeu:
– Piloto aviador.
A outra, hesitou, mas disse:
– Piloto de… comboios.
A mais velha deu-lhe um ligeiro encontrão:
-Não é piloto de comboios, é maquinista.
A mais pequenina abanou a cabeça e insistiu:
– Não, é piloto. Quero ser piloto de comboios. Quero ser como ele, só que de comboios.
O seu dedinho espetado apontava para o ecrã da televisão. Na imagem estava Ayrton Senna, que acabara de cortar a meta, sagrando-se campeão do mundo pela primeira vez.

 

 

Velocidade. Emoção. Prazer. Desafio. As cores, a precisão dançada das paragens nas boxes. O rosnar de motores. Reconhecíamos o seu capacete amarelo em qualquer lado, dentro de qualquer carro. Entrava na pista de ar carracundo, rosto fechado, duro. Rugas de preocupação entre os olhos, o peso do mundo sobre os ombros. Raramente sorria, e quando o fazia, o sorriso, maravilhoso, nunca transbordava nos olhos, que se ausentavam, perdidos, etéreos, num ponto infinito. Por vezes, agachava-se e acariciava os pneus do carro, sentindo-lhes a textura e a temperatura, ou tocava no asfalto como quem media a pulsação de uma criatura viva.

 

 

Quando começou a caminhar, conta a mãe, a sua ânsia de rapidez era tal que tropeçava constantemente. Sempre que lhe comprava um gelado, tinha de comprar outro logo a seguir, porque certamente o primeiro iria parar ao chão. Era descoordenado, trapalhão, desengonçado, de lateralidade indefinida, esquerdino provável. Levaram-no ao médico e um neurologista detetou um problema de coordenação motora. Talvez por essa razão, ofereceram-lhe um pequeno kart com um motor de cortador de relva, aos três anos. Aos oito, os pais já nem estranhavam quando o carro desaparecia da garagem. Quando completou dez anos, corria em karts a sério. Brincava com microaviões, réplicas reais, a combustível, montando-os e desmontando-os cuidadosamente, apreendendo os estranhos segredos das suas entranhas mecânicas.

 

 

Fazia as curvas de corpo rígido, muito direito, as pernas e o dorso num ângulo de 90 graus. Curvava por vezes apenas com uma mão, a esquerda, dedos longos entalhados no volante. Problemas de lateralidade? Talvez fosse a sua tendência ambidextra, o facto de ser esquerdino, que o tornava particularmente poderoso ao volante. Descoordenação? Travava com a sensibilidade de um baterista, mudava de marcha, girava o volante, acelerava, controlando minuciosamente cada momento da condução com um ritmo e coordenação de percussionista premiado.

 

 

Aos 14 anos, levava um cronómetro para a pista e, em vez de fazer a volta completa e contar o tempo, Senna dividia o circuito em quatro secções e experimentava novos traçados em cada trecho, colecionando milésimos de segundo. Esses milésimos de segundo somados significavam muito tempo. Manteve o mesmo hábito de caça-milésimos na Fórmula 1. O seu talento inato, a sua ânsia de vencer a todo o custo e a religiosidade evidente, entrechocavam-se com a coragem, o perfecionismo, a persistência, em corridas inteligentes, cerebrais. Recolhia os dados telemétricos todos os dias e estudava-os cuidadosamente. Analisava os resultados dos outros pilotos. Seguia rotina minuciosa e fornecia informações assombrosas aos engenheiros, com um detalhe e rigor de computador: ponto de rotação do motor, problemas de chassis, pressão e temperatura.

 

 

Conhecia o seu carro e testava-o até aos limites do impossível. Ultrapassagens e curvas em sexta, rapidez e segurança em pistas encharcadas, manobras que ficarão na história. Gastava muito mais combustível, pois acelerava mais cedo, travava mais tarde, entrando nas curvas com toques de acelerador. Descobria pontos de ultrapassagem impensáveis. No Mónaco, tinha um apartamento frente à pista de rua. Observava-a da janela. Outras vezes, passeava de bicicleta ou lambreta pelo circuito, para memorizar as curvas e as retas, meticulosamente. “Fazer uma volta perfeita é como dar um nó de gravata em que as duas pontas devem ficar exatamente da mesma altura. A experiência ensina-nos que podemos fazê-lo, o treino também, mas, na realidade, jamais conseguimos.”

 

 

Senna era a estrela dos grandes prémios, bastando a sua presença para fazer subir as audiências. Quando morreu, muitos nunca mais assistiram a corridas de Fórmula 1. Para além do Instituto, com o seu nome, que apoia programas de educação infantil, Ayrton Senna transformou-se em super-herói de revista de quadr(ad)inhos no Brasil, o Senninha, com o seu Capacete Falante, e a inevitável Turma. Merecia melhor. O filme “Senna”, comercializado em DVD em conjunto com a edição de ontem da revista AutoHoje, recebeu o prémio do público World Cinema para Documentário do Festival de Cinema de Sundance, em 2011. Canções, videos, homenagens, há-as um pouco por todo o lado. Mas é mesmo só quando ouço Norberto Lobo a tocar o seu tema “Ayrton Senna”, do álbum “Pata lenta” (Mbari, 2009), que os olhos se me enchem de lágrimas.

 

 

“Canalizo todas as energias para ser o melhor do mundo. Se depender de mim, esgotarei os adjetivos do dicionário.”

“Quero fazer algo de especial. Todos os anos alguém ganha o título. Eu quero ir além disso.”

Fez. Foi.

 

 

dvd “Senna – Sem medo. Sem limites. Sem igual.” (“Senna”), de Asif Kapadia
Universal / AutoHoje, 2010 / 2011

 

Paula Pina

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“O Senhor Cavalo-Marinho”, de Eric Carle

 

“Toda a gente sabe que são as mães que trazem os filhos dentro da barriga. Os bebés formam-se no ventre das mães, crescem, e depois saltam cá para fora – para a luz. Por isso dizemos que as mulheres dão à luz.

O que pouca gente sabe é que há uma exceção. Existe uma espécie de animal em que é o pai que cria os filhos dentro da barriga e é ele que os entrega à luz: o cavalo-marinho. Como é que isto aconteceu? É essa a história que hoje vos quero contar: uma incrível história de amor.”

Não, não é assim que começa a narrativa de “O Senhor Cavalo-Marinho”, escrita e ilustrada por Eric Carle. Mas é exatamente assim que José Eduardo Agualusa (belissimamente acompanhado por Henrique Cayatte, na ilustração e design) dá início à sua história “O pai que se tornou mãe”, um dos contos integrados no livro “Estranhões e bizarrocos”, publicado em 2000 pela Dom Quixote. Na verdade, o que Agualusa nos propõe é uma explicação maravilhosa sobre a origem de um fenómeno original na natureza, tão ao jeito dos ancestrais contos etiológicos que forneciam mágicas e míticas razões para muitos enigmas e interrogações. Por que é que as girafas têm o pescoço comprido? Por que é que a água do mar é salgada? Por que é que existem animais venenosos? Por que é que o leopardo tem o pelo malhado?

 

 

Eric Carle tornou-se mais conhecido em Portugal graças ao clássico “A lagartinha muito comilona” (1969), reeditado pela Kalandraka em 2007 – depois da estreia, pelo Círculo de Leitores, em 1990 -, com o título “A lagartinha comilona”. Mestre da colagem, do recorte, da transparência e da aguarela, perito no uso de diferentes texturas e materiais, Carle oferece-nos em “O Senhor Cavalo-Marinho” um livro etéreo, que brinca às escondidas com o leitor: aos peixes multicolores em fundo branco pontuado por ligeiras ondulações de pincel molhado em aguarela diluída, juntam-se os efeitos translúcidos das folhas de acetato, que criam a ilusão de um verdadeiro cenário aquático.

A nota da contracapa, dirigida aos leitores, explicita o objetivo didático: a vontade de partilhar o conhecimento sobre um aspeto invulgar da natureza, patente aliás ao longo de todo o percurso artístico do autor. Mas se a base de construção do livro é científica, oferecendo uma lição sobre a natureza, nunca se perde o prazer do jogo, graças à introdução do gadget da camuflagem em acetato, em que juncos, um recife de coral, algas e rocha escondem e desvendam peixes diversos, originais ou bizarros. Por outro lado, a expressividade comunicativa do olhar dos peixes e as variações encantatórias de cores e de posições compensam inteligentemente a singeleza dos diálogos. É o respeitável Senhor Cavalo-Marinho que nos acompanha numa visita guiada pelo fundo do mar, descobrindo outros peixes que, tal como ele, tomam conta dos ovos e das crias, numa narrativa estruturada pela repetição e pela alternância, entre peixes que se camuflam, e os que não o fazem: são esses que transportam ovos.

 

 

Depois de acompanhar a viagem aquática da barriga cada vez mais redonda do Senhor Cavalo-Marinho, não haverá quem não saiba nomear os peixes que, tal como ele, tomam conta dos ovos preciosos e dos filhotes recém-nascidos. Este é, certamente, um livro sobre o amor paternal, sobre a devoção masculina, sobre o papel dos pais, mas Carle dedica-o uma mãe muito especial, a sua: Johanna Oelschläger Carle.

Vejam as guardas: tantos cavalinhos marinhos, não é? Que bela ideia para papel de parede, dirão de imediato aqueles com olho para a decoração. Mas atenção: alguém reparou no pequeno filhote, o único virado ao contrário? Claro que só lendo o livro todo, claro que só mesmo na última página da história descobrimos porquê: “Um dos bebés virou-se para trás e tentou voltar para dentro da bolsa. – Isso é que não! – disse o Senhor Cavalo-Marinho. – Eu gosto muito de ti, mas agora já estás preparado para seguir o teu caminho sozinho.” Não será esta uma das mais difíceis tarefas da educação? Por esta razão “O Senhor Cavalo-Marinho” é “uma incrível história de amor”.

 

livro “O Senhor Cavalo-Marinho”, de Eric Carle
Kalandraka, 2011
[a partir dos 3 anos]

 

Paula Pina

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Madalena Matoso [ilustradora convidada, outono 2011, semana 1]

 

Dando continuidade ao nosso ciclo Ilustrador Convidado, neste outono de 2011 receberemos Madalena Matoso, uma das criadoras mais relevantes no campo da ilustração infantojuvenil portuguesa da última década, mas também uma  designer brilhante, editora e fundadora da Planeta Tangerina, casa que publicou muitos dos seus mais notáveis trabalhos. Semanalmente, Madalena Matoso aqui responderá a uma das nossas perguntas e aqui apresentará uma sua ilustração de que se orgulhe particularmente.

 

Cria Cria: Como (e quando) é que surgiu o desenho na sua vida? E como (e quando) é que o desenho começou a “transformar-se” em ilustração?

Madalena Matoso: Não me lembro de começar a desenhar, tal como não me lembro de nascer ou de aprender a andar (tenho algumas memórias de aprender a falar mas, provavelmente, são inventadas). Lembro-me que desenhava muito, todos os dias. Depois da escola, eu, os meus irmãos e alguns vizinhos juntávamo-nos à volta da mesa da sala de jantar a desenhar. Também fazia desenhos no consultório, à espera do médico, no banco à espera que fossem levantar dinheiro, nas toalhas de papel dos restaurantes,… Se fosse preciso esperar por alguma coisa, a minha mãe dava-me um papel e uma caneta.

Acho que o desenho se começou a transformar em ilustração quando comecei a fazer livros para oferecer. Na escola, fazíamos a clássica “composição + desenho”, mas o desenho só estava lá para a página não ficar muito vazia. Esses desenhos não me entusiasmavam muito. Acho que estava em piloto automático. O que eu gostava mesmo de fazer, o que era divertido, era inventar coisas para fazer em casa e fazê-las (livros, cenários para brincar, máscaras).

 
ilustração originalmente publicada no livro “Quando eu nasci” (Planeta Tangerina, 2007)

 

Madalena Matoso: Este desenho é do “Quando eu nasci”. O texto diz: “Quando eu nasci nunca tinha mexido na terra nem feito túneis na areia. As minhas mãos nunca tinham tocado em nada, só uma na outra.” Lembrei-me de quando era pequena e estava na praia. Às vezes fazíamos dois túneis na areia e eles encontravam-se e podíamos dar a mão lá por baixo. Neste livro, procurei criar imagens muito simples, quase minimalistas, mas que conseguissem ter muitas ideias “lá dentro”. Ideias do texto e não só. Por outro lado, trabalhei a simetria das páginas e a relação com o meio do livro (onde as folhas dobram) e tentei tirar partido dessa charneira. Em relação às cores, também as resumi a quatro + preto para procurar essa imagem simples, simbólica.

O passarinho está mais relacionado com outra parte do texto desta página: “Quando eu nasci era tudo novo. Tudo por estrear.” Lembrei-me de quando chegamos a uma praia no inverno e ela está sem pegadas, “por estrear” (achamos nós).

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“Sequoia gigantis”, de Sara Serpa com video de André da Loba

andre da loba sara serpa sequoia gigantis

 

André da Loba, que com Sara Serpa partilha o facto de ser um dos mais criativos jovens emigrantes portugueses em Nova Iorque, empresta agora o seu talento enquanto animador à música “Sequoia Gigantis”, que integra o álbum “Mobile” (Inner Circle Music, 2011), dessa extraordinária cantora de jazz nacional, criando um espantoso video para a mesma, revelado ao mundo há poucos dias. Os traços simples e cromaticamente implacáveis do ilustrador, claramente devedores da estética pioneira de um mestre como Norman McLaren, acrescentam à canção um universo pictórico que explora a relação, tantas vezes conflituosa, entre homem e natureza, num vocabulário gráfico depurado, fascinante, viciante.

 

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O mistério do detetive do olho de vidro

 

Foi, sem dúvida, o detetive menos carismático, o menos charmoso e, definitivamente, o mais mal vestido de sempre. Usava uma gabardine velha e deformada, de uma cor perigosamente indigna. Conduzia um Peugeot descapotável, modelo 403, de 1954 (um carro raro, já que só se fabricaram 504 exemplares), mas em péssimo estado de conservação. Fumava com evidente prazer uns charutos deploráveis e parecia sempre ter passado a noite a vasculhar em caixotes de lixo.

Os episódios da série televisiva, apesar de formulaicos, eram quase sempre brilhantes; os assassinos, eram invariavelmente espertos, o que constituía sempre um desafio; os enredos, eram interessantes, no seu estilo “open-book”, com o crime a desenrolar-se à nossa frente, expondo o culpado logo de início. Gostava particularmente daquele momento em que, parecendo desistir da investigação, o detetive voltava atrás subitamente, e, com o seu peculiar jeito atrapalhado e inconveniente, dizia: “just one more thing”. Com essa “one more thing” resolvia geralmente o mistério e apanhava o criminoso.

 

 

Sabemos também muito pouco acerca da vida familiar deste tenente da polícia de Los Angeles, brigada de homicídios, excetuando talvez as referências esporádicas à mulher (que conduz o carro novo) e a um cão. Igualmente deliciosa, a curiosidade bizarra e inesperada relativamente a pequenas coisas sem importância, o que costumava deixar os interlocutores desconcertados. Depois de um interrogatório duro, por exemplo, era capaz de perguntar subitamente: “Quanto pagou por aquela mala? Gostava de oferecer uma à minha mulher…”.

 

 

Não era forte, nem alto, nem musculado, nem atlético. Não era destemido, nem corajoso. Detestava violência e barulho de disparos. Não era jovem e enérgico, nem velho e sábio. Não tinha sequer um ar inteligente, nem um discurso arguto, nem uma voz melíflua, nem uns olhos perscrutadores. Na verdade, o seu olhar enviesado sempre foi fonte de fascínio, assim como a voz rouca e os maneirismos verbais e gestuais.

O olhar enviesado, percebi mais tarde, não era estilo. Aos três anos, uma doença maligna obrigara à remoção cirúrgica de um olho. Passou depois a usar um olho feito de vidro. Esse facto não o impediu de se tornar num líder de turma muito popular e num desportista de sucesso no basquetebol e no beisebol. Estudou literatura e ciência política, tirou um mestrado em administração pública e candidatou-se a um lugar na CIA. Foi esse olho de vidro que impediu o seu recrutamento, já no final da 2ª Guerra Mundial, quando se decidiu alistar. A recusa não o demoveu – alistou-se na marinha mercante, como cozinheiro e copeiro: “Lá eles não se importam se és cego ou não. O único que tem de ver bem no navio é o capitão. E no caso do Titanic, ele também não conseguiu ver lá muito bem…”. Há, aliás, uma história deliciosa, acerca da chegada do jovem copeiro ao camarote, que iria ter de partilhar com um matulão de ar ameaçador. Parece que, quando confrontado com a pergunta acerca de qual o problema físico que lhe impedira o recrutamento, ele se sentou e, calmamente, começou por tirar a ponte dentária que usava, colocando-a sobre a mesinha. Depois, extraiu o olho. Quando começou a fingir que desenroscava uma das pernas, o marinheiro com ar de poucos amigos teve uma súbita necessidade de ir até ao convés apanhar ar…

Tornou-se ator. Devido à sua deficiência física, atribuíam-lhe geralmente papéis menores, mas foi essa mesma deficiência física que o tornou especial, pois é o seu olhar de vidro que recordamos até hoje. A voz também. Vale a pena ouvi-lo como avô narrador, no filme de 1987 “The Princess Bride”. O presente que traz para o neto doente é um livro, o mesmo livro que o seu pai lhe lia quando estava doente, e que antes dele o avô lia ao seu pai, no tempo em que a televisão era feita de… livros.

 

 

Vale a pena revê-lo, o detetive do olho de vidro, ar de vagabundo e astúcia de Sherlock Holmes, a assobiar ou a cantarolar a velha melodia de uma lengalenga infantil inglesa:

This old man, he played one
He played knick-knack on my thumb
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played two
He played knick-knack on my shoe
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played three
He played knick-knack on my knee
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played four
He played knick-knack on my door
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played five
He played knick-knack on my hive
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played six
He played knick-knack on my sticks
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played seven
He played knick-knack up in heaven
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played eight
He played knick-knack on my gate
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played nine
He played knick-knack on my spine
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

This old man, he played ten
He played knick-knack once again
Knick-knack paddywhack, give your dog a bone
This old man came rolling home

 

 

Morreu neste verão, em junho. O ator chamava-se Peter Falk. Nasceu a 16 de setembro de 1927. O detetive chamava-se Columbo.

 

 

Paula Pina

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“Concerto por uma boa causa”

A Orquestra Metropolitana de Lisboa irá apresentar um recital organizado conjuntamente com a Antena 2, cujo objetivo é angariar fundos para que seja possível dar música às crianças internadas nos 11 hospitais de Lisboa e arredores que dispõem de serviço pediátrico: as receitas do espetáculo – que acontecerá a 30 de setembro, pelas 21 horas, na Sala da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, no Hospital Santa Maria – reverterão na sua totalidade para a compra de aparelhagens destinadas às enfermarias infantis destas unidades hospitalares. Regida pelo maestro Christian Ludwig, a Metropolitana tocará suites dos bailados “Swan lake” e “The nutcracker”, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky. Os bilhetes já estão à venda e custam 10€.

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“Como é que uma galinha…”, de Isabel Minhós Martins com ilustrações de Yara Kono

 

“Como é que uma galinha…”, da autoria de Isabel Minhós Martins e com ilustração de Yara Kono, publicada pela Planeta Tangerina, não é uma história. É uma pergunta. Ou melhor, é uma pergunta gigante, que se vai desdobrando em outras perguntas encaixadas na primeira e, se quisermos, reforçando a primeira: “como é que uma galinha…?”, “mas como?”, “como?”. Na realidade, a interrogação sobre um dos animais mais vulgares e mais simbólicos do mundo acaba por se assemelhar a uma alegoria sobre os paradoxos da natureza. Os defeitos ou caraterísticas da ave, os seus hábitos e incapacidades são colocados em evidência. Ao mesmo tempo, expressa-se a perplexidade causada por aquele que é considerado o seu mais notável feito: pôr ovos. “Como é que tanta Matemática, / Tanta Biologia, / Tanta simplicidade, / Tanta sabedoria… Saem do rabo de uma galinha?”

A natureza tem destas coisas. Mas até que ponto se resgata de facto a dignidade da galinha? Até que ponto nos libertamos do estereótipo da galinha-objeto, da tal galinha-máquina-poedeira das linhas de produção industrial, a galinha depenada, pesada, embalada, catalogada, enfileirada? Da galinha procriadora de um artigo de consumo humano, o salvífico filho-ovo? Por vezes, algumas tentativas de humor resvalam para esta visão mais discutível do animal, nomeadamente no final do livro. A galinha é redimida, enquanto animal cultural e convencionalmente desvalorizado, porque de dentro dela saem ovos, pequenas obras de arte, estética e gastronomicamente perfeitas. Apesar do seu ar “feinho” e “pouco inteligente”, muito “tonto, tonto, tonto”, não obstante ser “pitosga”, “desajeitada”, “mal jeitosa”, “ociosa”, chegámos à conclusão de que a galinha, não é, simplesmente, uma galinha, mas sim “uma máscara”, “um verdadeiro agente secreto / Que guarda em si um segredo: Um pequeno planeta / Que traz a vida a reboque. / Mas o mais importante de tudo… é que não falte um bitoque!”…

O texto de Isabel Minhós Martins torna-se auditivamente interessante devido à utilização das rimas, das anáforas e dos paralelismos, e, evidentemente, pela pontuação expressiva. Todavia, é na delicadeza irónica das ilustrações que se encontra o ponto forte do livro, desde a escolha de materiais e cores, às colagens recorrendo a símbolos, códigos, selos, etiquetas ou datas de validade que encontramos nas embalagens de ovos.  Apesar de reconhecermos valor pedagógico ao texto, às referências culinárias ao ovo e ao tópico da utilidade da galinha para o ser humano, temas sempre explorados em âmbito educativo pré-escolar, a obra vale sobretudo pelos detalhes da ilustração: desde os objetos decorativos alusivos até à presença de outros animais (recordando a fábula da galinha ruiva), passando pela galinha que espirra e pela sugestão de velocidade do movimento de braços batendo as claras em castelo, até à incongruência de algumas galinhas dobrarem as articulações das patas para a frente, o que lhes dá, assinale-se, um toque muito feminino…

 

 

Apesar da ironia evidente em algumas passagens, e do sucesso, confirmado em risotas, que decerto se obterá junto dos mais pequenos graças às reiteradas referências ao “cocó”, vale a pena contar outras histórias que a ilustração conta. Conhecem aquela do menino que se mascarou de galinha e entrou no galinheiro para roubar um ovo, mas que acaba perseguido pela galinha e seus pintainhos? Não? Então tomem bem atenção à capa e contracapa. E já ouviram a história da galinha glutona que entrou à socapa num lindo couval bem português, e que, de guardanapo ao peito, devorou e debicou todos os pés de couve verdinha, escapulindo-se depois, de papo a abarrotar? Também não conhecem? Pois então, vejam com cuidado as guardas iniciais e finais.

 

 

livro “Como é que uma galinha…”, de Isabel Minhós Martins com ilustrações de Yara Kono
Planeta Tangerina, 2011
[a partir dos 3 anos]

 

Paula Pina

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Marta Madureira (ilustradora convidada, verão 2011, última semana)

Sazonalmente, convidaremos um ilustrador com obra particularmente louvável na área infantojuvenil para rever o essencial do seu trabalho publicado até à atualidade. Uma vez por semana, esse criador responderá a uma pergunta do Cria Cria e, em paralelo, selecionará e comentará uma ilustração do seu espólio que, por um motivo ou por outro, queira destacar.

Para inaugurar este ciclo e trazer um pouco do seu estilo ao verão de 2011, recebemos Marta Madureira, autora com dezenas de livros publicados e ilustrações espalhadas por diversas revistas e outros suportes. Dona de uma marca formal inconfundível, Marta Madureira tem cerca de uma década de trabalho que merece toda a nossa admiração e carinho. Um corpo de trabalho que ficámos a conhecer melhor aqui no blogue até hoje, momento que marca o fim desta “residência” estival.

Não queremos deixar de formalizar aqui o nosso mais profundo agradecimento à autora pela imensa beleza e inteligência do trabalho que connosco partilhou, bem como pela dedicação absoluta que, semana após semana, devotou ao nosso desafio.

 

Cria Cria: Com o excesso de oferta no campo da ilustração que aconteceu em Portugal (e um pouco por todo o mundo) nesta última década, acha que o mercado ainda consegue ser justo para quem faz os trabalhos de maior valor artístico? O crescimento exponencial da oferta tem sido devidamente acompanhado pelo crescimento da procura? Um ilustrador com talento como o seu pode viver apenas da ilustração? Tem alguns períodos de tempo sem trabalhos novos em mãos? Ou, por outro lado, recusa muitas propostas de trabalho?

Marta Madureira: Houve, de facto, nos últimos anos, uma projeção da ilustração, uma tomada de consciência e afirmação da ilustração como disciplina própria. E isso só pode ser positivo e um indício de que o futuro próximo pode ser animador. Este crescimento, que se reflete numa maior oferta, traz também maior variedade de resultados e estimula os mercados para as mais diversas áreas da ilustração. Eu, que acompanho de perto os futuros profissionais, sinto uma geração efervescente, muitas vezes sem grandes meios, mas com muita vontade de fazer ilustração. E isso repercute-se na procura, que começa a entender a ilustração como uma solução muito viável para os mais diversos suportes de comunicação. Lembro-me de, já há uns anos, os Boolab, produtora espanhola especializada em animação, numa das apresentações do OFFF (International Festival for the Post-Digital Creation Culture) congratularem os clientes por cada vez mais elegerem o recurso à ilustração e à animação como solução para a divulgação dos seus produtos.

A par desta consciencialização, há também a vantagem da ilustração estar cada vez mais associada a um ramo do design gráfico, e assim assumir um papel mais funcional e aplicável a objetos de comunicação. Muito se tem falado desta nova (que já não é nova) abordagem da ilustração e das novas oportunidades que assim se criam. Nos muitos artigos da Computer Arts sobre o assunto, destaco o “Illustration: New opportunities” e o “The illustration revival”, que focam exatamente esse novo estatuto da ilustração.

Paralelamente a isto, a internet veio permitir um alargamento do espaço, que é agora global. Permite que o ilustrador ultrapasse as fronteiras geográficas e alargue o seu leque de clientes e de trabalhos a todo o mundo. E isso é, já por si, um bom panorama. A internet tem servido ainda como grande motor para os novos ilustradores se manterem atualizados e com mais meios para a divulgação dos seus trabalhos.

Em resumo, acredito que sim, que a ilustração está numa boa fase e que há um lugar próprio para todas as suas formas. Aliás, não faria sentido de outra forma a minha dedicação ao ensino, se não acreditasse no seu futuro.

Quanto à segunda parte da questão, há respostas possíveis: não, não vivo financeiramente da ilustração; e sim, posso dizer que vivo da ilustração. A minha ocupação principal é dar aulas, e como tal não tenho a pretensão de fazer dinheiro com os trabalhos que vou tendo em mãos. Mas, ainda assim, tenho a vantagem de dar aulas dentro da área, pelo que posso entender que, sob este ponto de vista, é a ilustração que me sustenta.

Do que vejo e experiencio, penso que poucos ilustradores a tempo inteiro conseguirão viver confortavelmente da ilustração. Conheço poucos que o fazem. Mas esta é uma realidade que, em meu entender, tem tendência a mudar. Tenho tido cada vez mais oferta de trabalho e alguma margem de manobra para escolher os projetos de que gosto. Isso leva-me a acreditar que, num futuro próximo, a ilustração poderá ganhar o estatuto de profissão e permitir ao ilustrador a sua autonomia financeira, como é desejável.

 

Cria Cria: E se, para concluir da melhor forma possível esta estação como ilustradora convidada do Cria Cria, lhe pedíssemos para fazer o nosso retrato, i.e., para ilustrar a sua perceção gráfica do blogue, aceitaria?

Marta Madureira: Um Cria Cria que cria a dobrar. Com criaturas que nascem das conversas e crescem nas conversas sobre bons livros, boas ideias e boas pessoas. Bons voos, bons ventos e boas crias!

 

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“Charlie e a fábrica de chocolate” e “O fantástico Sr. Raposo”, de Roald Dahl com ilustrações de Quentin Blake

 

Faria 95 anos a 13 de setembro. Quem não tiver medo de cemitérios e decidir visitar a sepultura do escritor de origem galesa Roald Dahl, na igreja de St. Peter and St. Paul, em Great Missenden, Buckinghamshire, Reino Unido, pode ficar surpreendido, perplexo, chocado, estarrecido, quiçá até bastante enojado (isto se não se tiver antecipadamente preparado para a visita lendo, pelo menos, “Os tontos”, “O dedo mágico”, “As bruxas”, “James e o pêssego gigante”, “O fantástico Sr. Raposo”, “O enorme crocodilo” e “O GAG”). Na sepultura, não encontramos flores radiosas, ou plantas nobres em vasos, jarrões ou jarrinhas. Também não encontramos mármores cintilantes e anjinhos rechonchudos. Não vemos cruzes, fotografias, ou elogiosas inscrições fúnebres em verso. Apenas uma lápide vertical e um nome: Roald. Na zona inferior, junto às ervas daninhas que por lá crescem livremente, o desenho de uma garrafa, de duas cartas e de um livro. Depois, espalhados, alguns brinquedos já muito estragados pelo uso e pelo tempo (uma cenoura de plástico, um ursinho de peluche, um “jack-in-the-box” em forma de ovo) e, ainda, plantada, uma alta, enorme, maravilhosa, rija e escamosa cebola.

Paradoxal, contraditório, intrigante, dilacerado entre o apelo de uma ambição desmesurada e o desejo intenso de regresso à infância, herói de guerra, mentiroso, arruaceiro, gentil, egoísta, arrogante, provocador, vaidoso e malcriado; mais alto do que a maioria, voz rouca pelo tabaco; falava três línguas: inglês, norueguês e swahili – eis um retrato possível de Roald Dahl.

A sua relação com a escrita para crianças teve um início relutante, mas foi esta opção artística que o tornou popular, rico e famoso em todo o mundo, do Japão a Israel, do Brasil à Tailândia. Só a primeira edição na China foi de dois milhões de exemplares. Na Grã-Bretanha, entre 1980 e 1990, mais de 11 milhões de livros em paperback foram vendidos – o que significa que, no final da sua vida, uma em cada três crianças comprava ou recebia de presente um livro de Dahl anualmente.

As histórias são subversivas, hedonistas, fazem-nos tropeçar em elementos extraídos das experiências de vida do autor, mas seguem o modelo dos contos tradicionais. Agarram os leitores, provocam o riso e lidam com os seus maiores medos. São histórias surpreendentes, de medo, de opressão e crueldade, delirantemente imaginativas e amorais. São histórias de coragem, de solidão (os heróis são geralmente crianças solitárias, como Dahl), de desafios, descobertas e poderes extraordinários.

Por exemplo, em “As bruxas”, encontramos discretas reminiscências dos pais noruegueses e das férias que passava na Noruega, e ainda vestígios de tragédias, como a pneumonia que levou o pai, dois meses depois da morte da irmã mais velha, de apendicite. Sophie, mãe de Roald Dahl, com o bebé ainda na barriga, fazia longos passeios no campo, diariamente. Escreveu Dahl, em “Boy”: “Se o olhar de uma mulher grávida estiver constantemente a observar a beleza da natureza, esta beleza irá ser transmitida à mente do bebé por nascer ainda no útero, e o bebé vai crescer tornando-se um amante das coisas belas”.

 

 

“Charlie e a fábrica de chocolate”, a obra que Tim Burton celebrizou na adaptação ao cinema, rapidamente se tornou num dos livros mais populares de Dahl. Por essa razão, o autor escreveu a sequela “Charlie e o grande elevador de vidro” (1972), e esboçou “Charlie na Casa Branca”, que nunca concluiu. “Charlie e a fábrica de chocolate”, juntamente com “O fantástico Sr. Raposo”, foram recentemente reeditados pela Civilização, com nova tradução portuguesa, e mantendo as tradicionais ilustrações de Quentin Blake. A maior novidade da edição passa pelas informações biográficas que oferece no final.

A Fundação Roald Dahl apoia projetos nas áreas da hematologia, neurologia e literacia. Em 1992, a fundação financiou uma biblioteca e um mini-bus para um centro de tratamento para crianças epiléticas. Patrocinou também diversos eventos musicais, como uma versão musicada (por Paul Patterson) de “O capuchinho vermelho”, com a London Philharmonic no Royal Festival Hall (novembro de 1992), por exemplo, com o objetivo de promover a ligação com a música e fornecer aos professores material de qualidade para utilizarem durante as aulas.

Vale a pena espreitar o The Roald Dahl Museum and Story Centre e fazer uma visita virtual à cabana que o escritor mandou construir no seu jardim, a Gipsy House. Foi lá que, instalado na sua poltrona velha e desbotada, joelhos cobertos com um cobertor axadrezado, apoiado sobre um tabuleiro de madeira que ele próprio construiu e que cobriu com um tecido de feltro verde da sua mesa de snooker, Roald Dahl escreveu todas as suas histórias. Duas horas de manhã, duas horas à tarde, ritualmente. Usava sempre afiadíssimos lápis amarelos Dixon Ticonderoga e escrevia inevitavelmente em folhas de papel pautado amarelo, que encomendava diretamente dos Estados Unidos. Na parede, papéis, recortes, cartas, fotografias, esboços, desenhos infantis, um cartaz de aniversário e até uma moldura expondo uma válvula Wade-Dahl-Till (instrumento cirúrgico que ajudou a criar para tratar a hidroencefalia de que padecia o seu filho Theo). Há ainda uma folha de papel, presa com um alfinete, onde se pode ler: “’Art is a lie to which we give the accent of truth’ – Edgar Degas”.

Dahl achava muito divertido escrever sobre personagens nojentas. A maneira ideal, explicava ele, era começar e ir escrevendo, escrevendo, várias vezes, tornando as personagens progressivamente mais e mais nojentas… Para celebrar o dia 13 de setembro, dia de aniversário de Roald Dahl, propomos um concurso, a que daremos o nome de “Jogo das Ofensas Mais Nojentas e Originais”. Para além do efeito sublimador de tensões conscientes, sub-conscientes, pré-conscientes (e até inconscientes!); para além dos esperáveis efeitos preventivos, paliativos, diuréticos e laxativos; para além de constituir um excelente exercício linguístico fono-articulatório e gramatical, abrangendo os níveis semântico, lexical, sintático, morfológico, sintagmático e sociolinguístico, constitui um recomendável exercício neurocognitivo. Divirtam-se. Entretanto, aqui vos deixamos uma lista “made by Roald Dahl”, para se inspirarem: “coradinho enfezado”, “pateta-alegre”, “camarão encarquilhado”, “anãozinho porco”, “epigrama coxo” (adoramos este!), “lagarta raquítica”, “peludo esgrouviado”, “pifarozinho avariado”, “garrafa partida”, “enfezado mentiroso”, “come-lavagem”, “javali africano peludo”, “bruxa velha”, “nabo podre”, “velho peixe malcheiroso”, “velho estafermo nojento”, “brutamontes selvagem”,…

 

 

livro “Charlie e a fábrica de chocolate”, de Roald Dahl com ilustrações de Quentin Blake
livro “O fantástico Sr. Raposo”, de Roald Dahl com ilustrações de Quentin Blake
ambos Civilização, 2011
[a partir dos 8 anos]

 

Paula Pina

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Homem Aranha, 11 de setembro

 

“Interrompemos a nossa emissão para transmitir uma notícia de última hora.
Longitude: 74 graus, 0 minutos, 23 segundos oeste. Latitude: 40 graus, 42 minutos, 51 segundos norte.
Sigam o som das sirenes.
… Meu Deus…
Há coisas que estão para além das palavras.
Para além da compreensão.
Para além do perdão.
Onde estavas tu?!
Como deixaste isto acontecer?
Eu…
Como responder que não sabíamos?
Que não podíamos saber.
Que nem imaginávamos.
Só loucos poderiam idealizar o plano, executar o ato, pilotar os aviões.
As pessoas íntegras serão sempre vulneráveis aos loucos, porque não conseguem conceber tais atrocidades.
Não estávamos à espera disto. Não estávamos aqui quando tudo aconteceu. Não pudemos impedi-lo.
Mas estamos agora.”

 

 

É assim que começa a história “11 de setembro”, publicada em novembro de 2001 em homenagem às vítimas e aos heróis reais da tragédia. O argumento é de J. Michael Straczinsky e o traço, magnífico, pertence a John Romita Jr. A capa deste número, a negro, mostra-nos somente o contraste do logotipo do Spider-Man. A primeira página, dupla, mostra-nos o Homem Aranha, plenamente humano em toda a sua fragilidade e impotência, perante o cenário de destruição e morte.

 

Paula Pina

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“Todos fazemos tudo”, de Madalena Matoso

 

“Todos fazemos tudo” é o título escolhido para a edição portuguesa de “Et pourquoi pas toi?”, a última obra de Madalena Matoso, agora publicada pela Planeta Tangerina. Projeto original das Éditions Notari, o livro nasce de um concurso de criatividade promovido pelo município de Genebra, a cidade capital dos Direitos Humanos. Graças a este concurso, milhares de crianças de instituições do ensino pré-escolar, creches e jardins de infância, receberam exemplares gratuitos da obra.

Mais do que um livro, “Todos fazemos tudo” é um álbum puro e um jogo. Recorrendo à técnica tradicional do méli-melo, as páginas são cortadas ao meio: na parte superior surge a identidade, o rosto e tronco das personagens, e um cenário básico; na parte inferior, a ação que a personagem desempenha, a atividade profissional, de lazer ou doméstica, acompanhada por alguns elementos identificativos. A ilustração deixa de ilustrar, de acompanhar, de complementar, de acrescentar algo ao texto. Nesta obra, a ilustração é a narrativa que, sem palavras, nos permite refletir sobre os estereótipos sociais e sobre a igualdade de direitos e deveres, com uma eficácia mil vezes superior a quaisquer sermões ou moralismos, projetos ou preleções.

 

 

Para além de oferecer aos mais pequenos um valioso contacto gráfico inicial com as representações do mundo e com a variedade de papéis e tarefas possíveis para cada ser humano, “Todos fazemos tudo” retrata situações do quotidiano, facilita o reconhecimento de objetos e cenários, nomeia-os, e até conta uma, várias, muitas histórias. A leitura visual propicia a compreensão das relações possíveis entre cada página (ou pedacinhos de página). É um livro-jogo para o leitor, mas terá sido igualmente um jogo-quebra-cabeças para a autora. Para além de talento artístico, gráfico e concetual, a ilustração exigiu um raciocínio lógico de construção matemática para que todas as possibilidades de conjugação batessem certo, quais peças de um puzzle. Algumas páginas serão, decerto, mais bem conseguidas do que outras, mas as pequenas incongruências dão ainda mais encanto à obra. Procurar sentidos, formular hipóteses, criar percursos e mini-narrativas a cada mudança de página inesperada, identificar indícios que nos conduzam à decifração das atividades em causa (algumas mais convencionais, outras mais intrigantes), dialogar com a possibilidade de continuação do processo de construção de outras imagens, quer individual quer coletivo – “Todos fazemos tudo” poderá tornar-se uma presença significativa em qualquer contexto pedagógico, graças às possibilidades criativas que, quase sem esforço (aparente), sugere.

 

 

Embora claramente centrado num convencional modelo europeu de vida, e talvez precisamente por isso, pode constituir uma base de trabalho interessante, lançando novos desafios: como seria este livro se tivesse sido criado tendo em conta uma realidade geográfica diferente? E se tivesse surgido noutra época, mais ou menos distante? Como imaginamos que poderia ser esta obra dentro de cem anos?

O leitor é cocriador da obra, decidindo o rumo que deseja dar à narrativa visual: sou uma avó babada, mas posso ser campeã de surf; sou um cientista importante, mas não me posso esquecer de pendurar a roupa; sou mulher, mas conduzo um trator potente; sou homem, mas escovo com esmero o cabelo da minha filha; sou de raça caucasiana, mas os meus filhos são de raça negra… Se “Todos fazemos tudo”, “porque não tu”?

 

livro “Todos fazemos tudo”, de Madalena Matoso
Planeta Tangerina, 2011
[a partir dos 12 meses]

 

Paula Pina

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Woody Woodpecker

Li recentemente um artigo sobre a relação entre programas televisivos e violência infantil e juvenil. Nesse artigo fazia-se um resumo das principais linhas de investigação acerca do tema e debatia-se, sumariamente, o resultado de diversas experiências, conduzidas um pouco por todo o mundo, quer em laboratórios bem apetrechados e por equipas constituídas por cientistas afamados, quer em humildes comunidades esquecidas, lideradas por jovens aspirantes a investigadores. Embora inconclusivo, porque inconclusivos ou discutíveis foram também os relatórios das experiências, o artigo referia, de passagem, um estudo laboratorial em particular, desenvolvido em 1956, com uma amostra de 24 crianças. O grupo foi dividido em dois: 12 crianças visualizaram um episódio de Woody Woodpecker, o famoso Pica-Pau criado em 1940 por Walter Lantz; as outras 12 viram um episódio de “The little red hen” (“A pequena galinha ruiva”).

Ora, se a memória me não atraiçoa, “The little red hen” é uma pequena fábula, de origem russa muito provavelmente, e com intuitos moralizantes óbvios: a galinha pede ajuda a vários animais para plantar o milho, colher, moer e fazer o pão e os bolos, mas todos se recusam, de forma mais ou menos descarada, e recorrendo a desculpas tolas. Claro que, depois do trabalho feito, estão todos prontos para participar do banquete. A galinha recusa-se então a partilhar os resultados do seu esforço e castiga a falta de solidariedade e de ajuda, alimentando orgulhosamente apenas os seus pintainhos. Na versão da Disney, “The wise little hen”, com a presença de um Pato Donald estreante, surge uma mesa coberta de delícias feitas de milho e fabulosas maçarocas (sim, também há uns pontapés, mas nada por aí além…).

 

 

Por outro lado, se bem me lembro, Woody Woodpecker era uma personagem bizarra, de raça indefinida e de sucesso inesperado junto das audiências. Era uma ave de poupa vermelha e corpo azul (variáveis), dona de uma mente tresloucada (sempre) e uma personalidade bem disposta, dotada de uma energia histérica e com um riso absolutamente singular (ainda que com vozes variáveis). Claro que o estereótipo da época se fazia sentir nos gags alucinantes, desde os nomes das restantes personagens à fisicalidade absurda das suas iniciativas, passando pelas paródias e autoreferências.

Curiosamente, o que sempre me fascinou no Woody Woodpecker nada tinha a ver com a violência dos gestos. Nada tinha a ver com a comicidade das situações. O que mais admirava era as maravilhosamente pictóricas e psicadélicas explosões de cor, irradiando do ecrã após explosões, pancadas, choques, entaladelas, apertões, pontapés e outras torturas, em imagens que sempre me pareceram quadros abstratos em movimento; a música, claro, a banda sonora; e a voz estranha, às vezes meio masculina e outras feminina, do Pica-Pau, e o seu inesquecível riso em staccattos diafragmais (que eu secretamente treinava). Relembremos a primeira aparição pública de Woody Woodpecker, em novembro de 1940, num episódio da série “Andy Panda”:

 

 

Depois de ler o artigo, confesso, fiquei um bocadinho apoquentada. Tanta violência televisiva que digerimos na infância, sem qualquer tipo de controlo parental ou escolar, deve ter afetado, senão grave, pelo menos parcialmente, o nosso desenvolvimento cognitivo, psicológico, afectivo, relacional, social. Foram tantas as marteladas a que assisti nessa época, que, certamente, num destes dias, acordarei enfiada num colete de forças. Só desejo que as gargalhadas de loucura que vier a soltar sejam parecidas com as do Woody Woodpecker…

 

dvd’s “As aventuras de Pica-Pau” (“The Woody Woodpecker show”)
Público, 2011
[a partir dos 6 anos]

 

Paula Pina

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“Esqueci-me como se chama”, de Daniil Harms com ilustrações de Gonçalo Viana

Estou com sono. Estou com muito sono mas não vou dormir. Abro de novo o portátil. Uma luzinha azul treme, indicando falta de bateria. Agarro num bloco e num lápis. Estou com sono mas não vou dormir. Vou escrever. Vou escrever sobre um homem.

 


É alto, muito magro, excessivamente magro. Assustadoramente magro. Está inclinado sobre uma mesa. A mesa está torta. Embrulhada num pano, uma fatia de pão escuro, duro. É de noite e está frio, um frio russo, mas a lareira está apagada, húmida. O homem escreve depressa, quase sem respirar. As folhas amarrotadas cobrem-se com a sua letra inclinada. Os cadernos são grosseiros, desiguais, as folhas desprendem-se e algumas caem no chão. No pequeno quarto desnudado, destaca-se um armário, gavetas meio abertas, atulhadas de folhas atadas com cordel. Folhas de papel também nas cadeiras esqueléticas, e sobre a cama desfeita, no canto. Do outro lado, ao pé das três janelas, uma cadeira de baloiço. O homem vira-se de repente para a porta, escutando os passos pesados, autoritários, apressados, subindo as escadas. O rosto, agora iluminado, está brilhante, pequenas gotas de suor nas têmporas arruivadas, os olhos claros inundados por uma vermelhidão líquida. No meio da testa, a marca profunda do franzir dos loucos entre as sobrancelhas salientes. Insolências sobrantes, ironias íntimas, provocações disfarçadas, esculpiram-lhe marcas de risos antigos nas faces encovadas. O homem levanta-se e, em movimentos rápidos, precisos, antecipatórios, baixa-se junto à cama e puxa uma mala esburacada, cujos fechos estalam sob a pressão dos dedos longos. O barulho dos passos é cada vez mais intenso. Uma voz de mulher que protesta, um grito, uma criança que chora. As gavetas do armário estão agora abertas, vazias. As folhas acumulam-se no fundo da mala, em rolos improvisados, em pilhas ansiosas. Numa corrida, o homem agarra no último caderno, segurando-o junto ao peito. A tinta mancha-lhe o peitilho, os punhos, o colarinho. Pancadas na porta. Num gesto súbito, o homem arranca do peito esse último caderno, atirando-o para dentro da mala, que empurra, com o pé, para debaixo da cama. As costas do homem estão direitas agora, a pose é a de lorde inglês, olhar altivo, sardónico. Aguarda.
– Daniil Ivánovitch Iuvatchov? N.K.V.D. Considere-se preso por atividades literárias antissoviéticas.

Nascido em 1905, Daniil Harms, aquele que é hoje considerado um dos grandes escritores e dramaturgos da história da literatura russa, morreu de fome durante o rigoroso inverno de 1942, esquecido numa prisão russa para doentes mentais. A mala com os manuscritos foi milagrosamente recuperada de entre os destroços da casa bombardeada, durante o cerco nazi a Leninegrado, pela mulher e por um amigo. Parece uma história, mas não é.

“Estou interessado apenas no nonsense. Só naquilo que não tem qualquer sentido prático. Estou interessado na vida apenas na sua manifestação absurda”, afirmou Harms. É a confirmação reiterada de que a realidade é mais absurda do que a ficção. É a biografia a espelhar a escrita, a escrita a refletir a vida, em surreal palíndromo. Harms fia, tece, corta, recorta, baralha, aborta, transforma, condensa, comprime e implode. Os seus textos não precisam de explicações ou de contextualizações. Saltam habilmente sobre as armadilhas do esperável, do estandartizado, das estratégias composicionais e autorais, e espreguiçam-se, provocatórios e miniaturais, em auto-referencialidades obsessivas, paródicas, absurdas. Da teatralidade beckettiana dos cartoons e filmes mudos, ao universo “nonsensical” de Carroll e Lear, estes contos para crianças de Daniil Harms, sendo contos para crianças, são também dez brevíssimos manifestos meta-ficcionais pós-modernos (não será esse um dos grandes fascínios da literatura para crianças?).

 


Na deliciosa edição da Bruaá de “Esqueci-me como se chama – Histórias e poemas de Daniil Harms”, com ilustração de Gonçalo Viana, o absurdo debica, esgaravata e saracoteia-se por todo o lado, do título à capa, contracapa e guardas, passando pelo índice, textos e ilustrações e terminando no aéreo anúncio do FIM. O texto brinca com a imagem que brinca com o texto que brinca com o leitor que brincará com ambos. O grafismo cromático caleidoscópico retro, a surpresa da opção geométrica e arquitetónica dos elementos visuais, a própria inspiração nas figuras tradicionais das matrioskas russas animadas e na expressividade caricatural típica dos antigos “scraps” e cartoons de imprensa, pela sua inteligência e dosagem ideal, tornam as histórias de Daniil Harms ainda mais subversivas.

Convites à participação dos narratários-ouvintes surgem incrustados nos textos. A ilustração acompanha o desafio. Seremos nós capazes de corresponder?

 

 
livro “Esqueci-me como se chama”, de Daniil Harms com ilustrações de Gonçalo Viana
Bruaá, 2011
[a partir dos 5 anos]

 

Paula Pina

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Marta Madureira (ilustradora convidada, verão 2011, semana 12)

Sazonalmente, convidaremos um ilustrador com obra particularmente louvável na área infantojuvenil para rever o essencial do seu trabalho publicado até à atualidade. Uma vez por semana, esse criador responderá a uma pergunta do Cria Cria e, em paralelo, selecionará e comentará uma ilustração do seu espólio que, por um motivo ou por outro, queira destacar.

Para inaugurar este ciclo e trazer um pouco do seu estilo a este verão de 2011, temos recebido Marta Madureira, autora com dezenas de livros publicados e ilustrações espalhadas por diversas revistas e outros suportes. Dona de uma marca formal inconfundível, Marta Madureira tem cerca de uma década de trabalho que merece toda a nossa admiração e carinho. Um corpo de trabalho para conhecer melhor aqui no blogue até ao fim desta estação…

 

Cria Cria: Imagina-se a fazer o que faz agora para sempre? Se não, o que é que pensa que estará a fazer daqui a 20 ou 30 anos? Que objetivos ainda pretende atingir na sua carreira? Se pudesse formular um desejo profissional, qual seria?

Marta Madureira: Este tipo de perguntas são sempre as mais difíceis, porque tenho, confesso, uma grande incapacidade de pensar a longo prazo. Ainda que tenha investido desde sempre esforço e trabalho nesta área, sinto, com toda a honestidade, que sou uma pessoa de sorte. As coisas sempre foram acontecendo naturalmente, sem grandes planos, e, na maioria dos casos, da melhor forma possível. Penso quase sempre a curto prazo, talvez porque tenha quase constantemente muito trabalho em mãos, o que me leva a organizar o tempo em metas curtas.

Mas em resposta às perguntas, sim, imagino-me a fazer o que faço hoje daqui a uns largos anos, e tenho até a esperança que isso aconteça. Não da mesma maneira que faço hoje, mas de uma forma melhorada, ampliada e reformulada, refletindo algum crescimento e maturidade que, espero, venham a acontecer. Embora não faça planos futuros muito alargados, consigo focar-me na principal direção a seguir. Mas nem sempre foi assim. Desde que descobri a ilustração, senti-me seduzida. Mas no início, e ainda em contexto académico, sentia-me desconfortável com esse rótulo. Lembro-me de, no último ano de faculdade, na apresentação do esboço do projeto final, uma professora ter dito: “a Marta fará, claro, um projeto de ilustração”. Naquela altura, não fiquei nada satisfeita. Ora essa, eu era uma futura designer! Agora com a distância de uns anos, reconheço uma série de preconceitos que ainda havia de resolver, nomeadamente o facto de ter estado antes num curso de pintura e me querer afirmar, na altura, como designer.

Depois de acabar a faculdade, fiz alguma resistência à ilustração e comecei a trabalhar em gabinetes de design. E, mais ou menos dois anos depois, comecei a sentir, mais a sério, a falta de um contacto próximo com a área. Nessa altura tentei conciliar o trabalho do dia a dia com trabalhos paralelos de ilustração, para pequenos projetos coletivos e algumas exposições. Quanto mais produzia, melhor percebia que essa era, exatamente, a minha mais valia, onde eu me conseguia distinguir, enquanto autora, dos outros trabalhos que fazia. Não deixava de ser designer, mas tinha a vantagem de também saber ilustrar. Ajudou igualmente perceber que os amigos de faculdade, também eles, se estavam a especializar em diversas áreas do design, uns no campo editorial, outros na identidade, na tipografia, na multimedia, etc. Isso fez-me sentir mais confortável e reconciliar com o estatuto de ilustradora.

De volta à questão, embora não viva preocupada com uma visão alargada do futuro, claro que há coisas que me obrigam a pensar mais a longo prazo. A minha editora com a Adélia Carvalho, a Tcharan, por exemplo, é um projeto a longo prazo que é pensado enquanto objetivo de vida. Por isso trabalhamos, as duas, para um futuro imediato, que nos permita construir e delinear um futuro perdurável. Assim como a minha atividade enquanto professora, na qual tenho feito uma série de investimentos, que só fazem sentido porque me revejo nela nos anos futuros. Um outro projeto a continuar, em conjunto com o Pedro Mota Teixeira, é a série de animação “As máquinas de Maria”, que, depois de passar em televisão, tem já pensada uma série de extensões possíveis.

Os desejos são sempre muitos. Mas muitas das coisas que sempre desejei já se foram concretizando, como é trabalhar entre amigos e fazer o que realmente gosto. Todos os outros grandes desejos passam por continuar esta boa fase e esperar que mais coisas boas aconteçam. Há, depois, desejos mais específicos e a curto prazo, não menos importantes, como por exemplo conseguir acabar a tempo tudo o que me propus fazer até ao final do ano.

 

 

ilustração originalmente publicada no projeto Munstruos, na revista Interact (2009)

 
Marta Madureira: Umas coisas nascem das outras, e comigo a ilustração foi acontecendo assim. Uns trabalhos dão lugar a outros, que se vão transformando noutros. E o resultado é a progressão de um trabalho global que reflete o anterior e que transporta algo mais para o trabalho que se segue. Este projeto, o Munstruos, surge de uma parceria com o Pedro Amado em 2009, a pedido da revista Interact e parte desse mesmo princípio da transformação, da apropriação de caraterísticas do que já existe. O resultado final tem a forma de uma aplicação em Processing (uma linguagem de programação) que cria personagens pela mistura selvagem e aleatória dos seus progenitores. As figuras dos lados são o “pai” e a “mãe”, e a do meio é o “filho”, resultado dessa fusão.

“A incerteza do resultado é provocada pela aleatoriedade da aplicação, que determina números e valores, aos quais se liga uma probabilidade fisionómica mais ou menos plausível. A escolha é aleatória e incentiva a conceção de um ser selvagem, no sentido em que nasce sem cuidado especial.” O utilizador é convidado a interagir com a aplicação, determinando a influência dos progenitores na imagem gerada. A explicação do projeto pode ser vista aqui (no painel “Laboratório”, à direita); e a aplicação aqui (há que ter paciência, porque a aplicação demora algum tempo a carregar). No final da experiência, nasce uma ilustração e uma criatura imprevista.

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Setembro no Planeta Tangerina, da galeria às livrarias

 

Além do tão atarefado “Todos fazemos tudo”, de Madalena Matoso, já aqui divulgado, a Planeta Tangerina irá igualmente começar a embelezar as mais felizes estantes infantis portuguesas com uma sua nova pérola: “Como é que uma galinha…”, parceria de Isabel Minhós Martins com a notável ilustradora Yara Kono. Os dois livros serão lançados na inauguração da exposição dos ilustradores residentes daquela casa editorial que irá acontecer no próximo sábado, 10 de setembro, na louvável galeria Dama Aflita, Porto – uma mostra para visitar até 22 de outubro.

 

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Vende-se: Panthermobile

Turum… turum… turumturumturumturumturuuuum… turururum… É um… motor? Não. É uma música!… Damos uma ajuda: qual é a cor qual é ela, de todas as cores a mais bela? Resposta difícil? Mas… e se substituíssemos “bela” por “icónica”? Qual é a cor mais icónica da história do cinema? Qual é a cor que vem acompanhada por um tema musical jazzístico imediatamente reconhecível? Qual é a cor, já agora, que é indissociável de um felino televisivo de gestos vagamente efeminados? Qual é a cor que poucos apreciam num veículo (exceto em veículos de pedal, de duas ou três rodas, e para meninas com idade inferior a oito anos)?

 

 

Cor de rosa! Pois é mesmo cor de rosa, o cor de rosa da série da NBC “Pantera cor de rosa”, o cor de rosa do tema musical de Henry Mancini, um cor de rosa vibrante, radical, psicadélico, único. Único também é o Panthermobile, criado em 1969 por Jay Ohrberg, o mesmo designer lendário de Hollywood que, entre outras extravagâncias automobilísticas, concebeu os Batmobiles do Batman, o DeLorean DMC-12 de Marty McFly (o herói de “Regresso ao futuro”), o K.I.T.T. de Michael Knight, o Ford Gran Torino de Starsky & Hutch, o General Lee dos “The Dukes of Hazzard”, e, claro, os carros da idade da pedra dos Flintstones. No site Pink Panther Car anuncia-se agora o leilão do Panthermobile, pela internet, entre os dias 4 de setembro e 14 de outubro. O veículo, embora sem licença de circulação, está em perfeito estado de conservação, afirmam. Necessita, confessam depois, de pequenas afinações ou reparações (o motor recusa-se a trabalhar, sabe-se lá porquê). 100 mil libras, dizem também, poderá ser o valor atingido.

 

 

É um automóvel desconcertante. É exemplar único. E é cor de rosa. Foi conduzido por uma criança no genérico da série. Qual o adulto que irá acrescentá-lo agora à sua coleção particular de brinquedos? Não sabemos. Mas gostaríamos que nos convidasse um dia para ir brincar com ele. Talvez então, com as portas da luxuosa garagem abertas de par em par, o Panthermobile voltasse a atacar, perdão, voltasse a trabalhar: Turum… turum… turumturumturumturumturuuuum… Turururum…

 

 

Paula Pina

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