Nasceu no Illinois, nos Estados Unidos, numa terreola que nem nome tinha (mas que era conhecida entre os locais como Gungiwam), e na única habitação a que se podia chamar verdadeiramente “casa” (as restantes eram cabanas de toros), mas o que é certo é que o talento do jovem Peter Sheaf Hersey Newell (1862-1924) cedo começou a dar nas vistas. Desenhava em tudo o que era sítio, da porta do celeiro às rodas das carroças, das paredes e tecidos que conseguia arranjar ao quadro negro da escola. Na verdade, um dos episódios que terá marcado a sua primeira e pouco auspiciosa passagem de apenas um semestre pela Art Students League, em Nova Iorque, foi a façanha de ter desenhado um gato morto na bandeja que um criado, contratado como modelo pela escola, trazia na mão e que utilizava para posar para a turma de desenho.
No início do século XIX, a maior parte dos livros destinados a crianças assentava numa base moralista, com mensagens didáticas e exemplares, sobretudo graças ao impacto de grupos religiosos. Em Inglaterra, por exemplo, a sociedade evangélica Religious Tract Society, fundada em 1799, foi uma das primeiras a publicar contos religiosos, seguindo-se histórias de aventuras e, finalmente, em 1879, a revista semanal para crianças “The boys’ own paper”. Mas a partir de 1820/30, a situação começa gradualmente a mudar. Os contos de fadas são editados nas versões de Perrault, dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen, e surgem as obras de Lewis Carroll e Edward Lear, de Trackeray, Charles Kingsley, Jean Ingelow e George MacDonald. Em meados de 1880, proliferam as revistas para crianças e jovens, e assiste-se ao florescimento de um mercado em que a ilustração começa a ganhar algum relevo. Produzem-se cada vez mais livros, mais baratos, e com meios de impressão mais sofisticados. Surgem, por exemplo, os “penny dreadful” e os “toy-books”, pequenos livros ilustrados a “six penny” o exemplar, criados por artistas como Walter Crane, Randolph Caldecott e Edmund Evans. Ou seja, Newell encontra-se precisamente no centro desta revolução, assistindo ao nascimento de diversas revistas juvenis, revistas de ficção, cheias de histórias de ação e aventura, episódios caseiros ou crónicas escolares. As crianças e animais são protagonistas de muitas destas aventuras, em que o quotidiano se mistura com um universo paralelo, onírico até. Uma das suas obras mais conhecidas é a banda desenhada “The naps of Polly Sleepyhead”, publicada em diversos jornais entre fevereiro de 1906 e setembro de 1907.
Newell ilustrou Mark Twain, Lewis Carroll e Stephen Crane. Fez parte de uma geração de nomes como A. B. Frost, E. W. Kemble, Maxfield Parrish, Howard Pyle ou Charles Dana Gibson. Os seus desenhos ficaram na história da ilustração e na história de publicações periódicas como a Harper’s Bazar ou a Scribner’s Magazine, e ainda em revistas para crianças, como a Harper’s Young People (mais tarde Harper’s Round Table) ou a St. Nicholas.
Peter Newell entrou como aprendiz, aos 16 anos, numa fábrica de cigarros, até conseguir trabalho como desenhador de retratos a partir de fotografias. Mas como o que queria mesmo era ser cartoonista e ilustrador decidiu enviar, corajosamente, alguns dos seus esboços para a Harper’s Bazar, uma das revistas mais populares na época. Em troca, recebeu um cheque simbólico, acompanhado de uma pequena nota: “Não revela qualquer talento”. Terá sido o suficiente para o fazer decidir partir à aventura para Nova Iorque, em 1882, de onde continuou a enviar desenhos para revistas e jornais: “Quando comecei a desenhar para revistas, havia muito poucas que tinham ilustração. Havia a Harper’s, Scribner’s e a Godey’s – e era tudo. (…) Quando comecei, cultivava não só o meu desenho, mas também a minha imaginação. Tentei desenvolver a capacidade para conceber situações humorísticas… Se um artista tivesse uma ideia que agradasse ao editor, receberia muito mais atenção do que um artista que não tivesse mais do que um bom desenho.”
De facto, a reputação inicial de Newell deveu-se sobretudo aos seus desenhos cómicos e aos episódios da vida rural, muitas vezes envolvendo personagens afro-americanas, não escapando por isso a acusações racistas e ao epíteto de “sulista”. Aliás, não é por acaso que, em algumas edições americanas, as páginas 36 e 37 de “O livro do buraco”, publicado em 1908, são suprimidas, precisamente pelas suas interpretações politicamente incorretas: o estereótipo de uma “mammy”, uma mulher negra, de avental, brinco de ouro e lenço na cabeça, dirigindo-se a três crianças negras atónitas, apontando, zangada, para o buraco que a bala fez numa grande melancia na prateleira da cozinha, ameaçando com uma “surra” o culpado (“I’d spank de chile dat done dat trick, / Ef I could learn his name”). Repare-se na transcrição que Newell faz (e que Mark Twain teria adorado!) da oralidade típica, não só da “mammy”, mas de várias outras personagens:
– o vendedor de balões da Rússia: “Balloons! Balloons! Who vants to buy?”;
– o líder da banda de música alemã: “You shtart too soon, my friendt— / You make a better plumber!”;
– o velhote turco: “Who put dot bombshell in my pipe? (…) “If I could git my hands on him, / Dere would be vone less joker!”;
– o cavalheiro ofendido: “What do you mean, sir (…) / By knocking off my high silk hat?”
Os próprios nomes que Newell escolhe para as personagens acentuam a vertente cómica, tanto do ponto de vista fonético, como pelas referências sociais tipificadas, o que é algo que se perde quase inteiramente na tradução, por mais bem conseguida que esteja do ponto de vista rítmico. O esforço de criar referências nacionais equivalentes para este universo tão especificamente anglo-saxónico pode encontrar-se na adoção do diminutivo Nando, na exclamação “Tou salvada!”, proferida pela senhora Silverman, na utilização da expressão idiomática “dando às de vila diogo”, na designação de “zé-pereira” para o músico da banda, ou no nome “Pedrês” para o cão.
Na linha das histórias de prevenção e infortúnio, a componente exemplar de alerta quanto aos perigos decorrentes da manipulação de armas de fogo acaba por ser subvertida, graças à utilização da sequência repetitiva de justaposição de acidentes, sustos e surpresas que o perigoso descuido do pequeno Tomás Potts provoca.
Se já conhecíamos “O livro inclinado” (Orfeu Mini, 2008), que é mesmo inclinado, e temos agora “O livro do buraco”, que tem mesmo um buraco, resta-nos aguardar a publicação local de outros livros desta série criada por Peter Newell: “Topsys and Turvys” (1 e 2) e “The rocket book”.
livro “O livro do buraco”, de Peter Newell
Libri Impressi / Gradiva, 2011
[a partir dos 7 anos]
Paula Pina