Nascido no dia 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, Rio de Janeiro (então capital do Império do Brasil), filho de um pintor de paredes, mulato, e de uma lavadeira de origem açoriana, Machado de Assis terá desde cedo enfrentado o preconceito racial e social. Singular e polifacetada, a sua obra percorre todos os géneros literários, desde a crónica ao romance, do folhetim ao libreto de ópera, passando pela poesia, pela crítica e pelo comentário político.
Também o percurso de Machado de Assis é singular e polifacetado: intelectual e amante das artes, estudou numa pequena escola de subúrbio pobre, ajudou nas missas católicas, e aprendeu francês com um padeiro imigrante; tornou-se frequentador assíduo de uma livraria que vendia chás, porcas e parafusos, remédios, tabaco, e que servia de local de reunião para os membros da Sociedade Petalógica (sim, vem do termo “peta”, ou seja, mentira): “Lá se discutia de tudo, desde a retirada de um ministro até à pirueta da dançarina da moda, desde o dó do peito de Tamberlick até os discursos do Marquês do Paraná”, escreveu ele mais tarde. Aos 17 anos, começou a trabalhar como tipógrafo e revisor de imprensa, emprego que determinaria o seu futuro como escritor.
Machado de Assis não teve filhos, mas alguns dos seus textos revelam-nos muitas infâncias e crescimentos difíceis: em “Conto de escola”, oferece-nos o retrato de uma escola de 1840, em que um rapazinho, Pilar, é confrontado com desafios de corrupção e delação; um outro conto, “História comum”, é um apólogo que nos obriga a refletir sobre a ascensão social, tendo como protagonista um… alfinete; em “O caso da vara” encontramos Damião, um jovem seminarista em luta com uma carreira eclesiástica que é obrigado a seguir por imposição de seu pai.
Conta-se ainda que Machado de Assis e sua mulher, Carolina, tinham uma cadela chamada Graziela. Carolina alimentava-a com sopas de leite e tricotava-lhe casaquinhos de lã. Após a morte da cadela, certo dia, em 1883, e morando o casal no nº. 18 da Rua do Cosme Velho, uma menina de 12 anos, sua vizinha, ter-lhes-á oferecido um gatinho. Eis aqui a deliciosa carta de agradecimento que o escritor enviou, escrevendo em nome do próprio bichano:
D. Alba,
Só agora posso pegar na pena e escrever-lhe para agradecer o obséquio que me fez mandando-me de presente ao velho amigo Machado.
No primeiro dia não pude conhecer bem este cavalheiro; ele buscava-me com palavrinhas doces e estalinhos, mas eu fugia-lhe com medo e metia-me pelos cantos ou embaixo dos aparadores.
No segundo dia já me aproximava, mas ainda cauteloso. Agora corro para ele sem receio, trepo-lhe aos joelhos e às costas, ele coça-me, diz-me graças, e, se não mia como eu, é porque lhe custa, mas espero que chegue até lá.
Só não consente que eu trepe à mesa, quando ele almoça ou janta, mas conserva-me nos joelhos e eu puxo-lhe os cordões do pijama.
A minha vida é alegre. Bebo leite, caldo de feijão e de sopa, com arroz, e já provei alguns pedaços de carne. A carne é boa; não creio, porém, que valha a de um camundongo, mas camundongo é que não há aqui, por mais que os procure. Creio que desconfiaram que há mouro na costa, e fugiram.
Quando virá ver-me? Eu não me canso de ouvir ao Machado que a senhora é muito bonita, muito meiga, muito graciosa, o encanto de seus pais.
E seus pais, como vão? Já terão descido de Petrópolis? Dê-lhes lembranças minhas, e não esqueças este jovem…
Gatinho preto.
Esta missiva surgiu publicada pela primeira vez no artigo “Radiografia de Machado de Assis”, da autoria do Professor Gladstone Chaves de Melo (1917-2001), datado de outubro de 1986, na Carta Mensal, editada pelo Orgão do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio.
Paula Pina