Daily Archives: June 24, 2011

O gatinho preto de Machado de Assis

Nascido no dia 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, Rio de Janeiro (então capital do Império do Brasil), filho de um pintor de paredes, mulato, e de uma lavadeira de origem açoriana, Machado de Assis terá desde cedo enfrentado o preconceito racial e social. Singular e polifacetada, a sua obra percorre todos os géneros literários, desde a crónica ao romance, do folhetim ao libreto de ópera, passando pela poesia, pela crítica e pelo comentário político.

 

 

Também o percurso de Machado de Assis é singular e polifacetado: intelectual e amante das artes, estudou numa pequena escola de subúrbio pobre, ajudou nas missas católicas, e aprendeu francês com um padeiro imigrante; tornou-se frequentador assíduo de uma livraria que vendia chás, porcas e parafusos, remédios, tabaco, e que servia de local de reunião para os membros da Sociedade Petalógica (sim, vem do termo “peta”, ou seja, mentira): “Lá se discutia de tudo, desde a retirada de um ministro até à pirueta da dançarina da moda, desde o dó do peito de Tamberlick até os discursos do Marquês do Paraná”, escreveu ele mais tarde. Aos 17 anos, começou a trabalhar como tipógrafo e revisor de imprensa, emprego que determinaria o seu futuro como escritor.

Machado de Assis não teve filhos, mas alguns dos seus textos revelam-nos muitas infâncias e crescimentos difíceis: em “Conto de escola”, oferece-nos o retrato de uma escola de 1840, em que um rapazinho, Pilar, é confrontado com desafios de corrupção e delação; um outro conto, “História comum”, é um apólogo que nos obriga a refletir sobre a ascensão social, tendo como protagonista um… alfinete; em “O caso da vara” encontramos Damião, um jovem seminarista em luta com uma carreira eclesiástica que é obrigado a seguir por imposição de seu pai.

Conta-se ainda que Machado de Assis e sua mulher, Carolina, tinham uma cadela chamada Graziela. Carolina alimentava-a com sopas de leite e tricotava-lhe casaquinhos de lã. Após a morte da cadela, certo dia, em 1883, e morando o casal no nº.  18 da Rua do Cosme Velho, uma menina de 12 anos, sua vizinha, ter-lhes-á oferecido um gatinho. Eis aqui a deliciosa carta de agradecimento que o escritor enviou, escrevendo em nome do próprio bichano:

 

 

 

 

 

 

D. Alba,

Só agora posso pegar na pena e escrever-lhe para agradecer o obséquio que me fez mandando-me de presente ao velho amigo Machado.

No primeiro dia não pude conhecer bem este cavalheiro; ele buscava-me com palavrinhas doces e estalinhos, mas eu fugia-lhe com medo e metia-me pelos cantos ou embaixo dos aparadores.

No segundo dia já me aproximava, mas ainda cauteloso. Agora corro para ele sem receio, trepo-lhe aos joelhos e às costas, ele coça-me, diz-me graças, e, se não mia como eu, é porque lhe custa, mas espero que chegue até lá.

Só não consente que eu trepe à mesa, quando ele almoça ou janta, mas conserva-me nos joelhos e eu puxo-lhe os cordões do pijama.

A minha vida é alegre. Bebo leite, caldo de feijão e de sopa, com arroz, e já provei alguns pedaços de carne. A carne é boa; não creio, porém, que valha a de um camundongo, mas camundongo é que não há aqui, por mais que os procure. Creio que desconfiaram que há mouro na costa, e fugiram.

Quando virá ver-me? Eu não me canso de ouvir ao Machado que a senhora é muito bonita, muito meiga, muito graciosa, o encanto de seus pais.

E seus pais, como vão? Já terão descido de Petrópolis? Dê-lhes lembranças minhas, e não esqueças este jovem…

Gatinho preto.

 


Esta missiva surgiu publicada pela primeira vez no artigo “Radiografia de Machado de Assis”, da autoria do Professor Gladstone Chaves de Melo (1917-2001), datado de outubro de 1986, na Carta Mensal, editada pelo Orgão do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio.

Paula Pina

Advertisement

2 Comments

Filed under Literatura, Ram Ram