Escrito por Jacques Prévert (1900-1977) em 1943, “Para fazer o retrato de um pássaro” é um poema publicado em “Paroles” (1946), concebido para uma das exposições da artista plástica Elsa Henriquez, a quem o dedica, e ilustrado pela primeira vez em 1953, com desenhos desta artista. Em Portugal, esta dupla Prévert/Henriquez estreou-se com um outro livro, “O dromedário”, originalmente parte da antologia “Contes pour enfants pas sages” (1947), publicado pela Contexto em 1983.
“Para fazer o retrato de um pássaro” é um poema. É um livro. É um filme. De facto, a biografia destes artistas desvenda-nos percursos pluriartísticos e interdisciplinares. Os textos de Prévert circulavam de mão em mão, em folhas manuscritas ou datilografadas, muitos tornaram-se canções que ainda hoje sabemos de cor, e os seus filmes e guiões para cinema não deixam ninguém indiferente. Mordicai Gerstein é pintor, escultor e realizador (músico também, muito provavelmente, se atentarmos no cuidado que é posto na transcrição do canto do pássaro, pleno de sentido musical, natural, na escolha das notas-tema para o canto da ave, e bachiano, nas suas variações…).
Vamos entrar dentro de um livro que é um “quadro”, real, emoldurado, com frente e verso. Quatro slides antes do “genérico”, a folha de rosto do livro, dão início a uma narrativa visual: um menino que dorme à luz da lua; o pássaro que chega e pousa no parapeito da janela; o seu canto que acorda o menino; o menino que, sem tirar os olhos do pássaro, posiciona uma enorme tela branca junto à janela.
Mas a narrativa fílmica que se segue é mais do que uma história, mais do que um guião, é uma reflexão sobre o próprio processo criativo. Na verdade, todas as aprendizagens importantes estão lá, todos os passos significativos, pré e pós-criação: do maravilhamento da descoberta à estruturação de materiais e espaços, das técnicas delicadas ao didatismo da espera e da paciência, da atenção à multiplicidade das sensações, da consciência da mutabilidade do universo às dimensões relacionais, da reflexão, da busca, da persistência, à pura alegria, à absoluta liberdade.
Diz o último verso: “Então, arranca muito suavemente uma das penas do pássaro e escreve o teu nome num canto do quadro.” O nome que o menino assina é o do ilustrador. É a sua história, a dele, ilustrador tornado personagem menino? Mas o nome, antes de ser dele, era já de outro, do poeta, do narrador. Mas o nome pode ser o “teu”, o nosso, de narratários, de leitores… O nome, texto primordial, é aqui múltiplo, partilhado, partilhável, desdobrando-se em tantas instâncias quantos os criadores-leitores. Este é um poema-livro-filme-guião-manual-de-instruções. Mas é muito mais do que isso. A voz do poeta que escreve confunde-se com a voz do ilustrador, com a voz do protagonista menino-artista, que regista a sua experiência, com a voz do ilustrador que registou a sua experiência e que acompanha o menino; com a voz do narratário, que somos nós, que lemos, que somos nós, que lemos para alguém, com quem todos partilham o ato criativo.
Termina aqui o texto originalmente escrito por Jacques Prévert. Mas a história continua, fechando-se o círculo em nova sequência de quadro slides: o menino que transporta o quadro com o pássaro cantando dentro da gaiola; o menino que pendura o quadro no quarto, junto à janela; o menino que se aconchega, satisfeito, quando a noite cai; o menino que adormece e o pássaro que voa de novo, pela janela aberta.
“(Amanhã podes pintar outro.)”, acrescentou Gerstein (ele, Prévert, o menino, o narrador, nós…). É com esta frase que a história termina. Mas será que termina mesmo?
Para fazer o retrato de um pássaro
Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
Agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta.
Esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
Às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel.
Depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar.
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar.
Então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro.
(tradução de Eugénio de Andrade do original “Pour faire le portrait d’un oiseau” de Jacques Prévert)
livro “Para fazer o retrato de um pássaro”, de Jacques Prévert com ilustrações de Mordicai Gerstein
Faktoria de Livros / Kalandraka, 2011
[a partir dos 4 anos]
Paula Pina