A “velha infância” de Arnaldo Antunes ao vivo em Lisboa

É um dos artistas mais singulares do Brasil e de toda esta apátrida globalização criativa contemporânea, e no entanto é plural como poucos. Arnaldo Antunes não é – nunca foi e nunca será – um modelar criador de arte musical, literária ou gráfica para crianças, e no entanto há tantas infâncias e tantas juventudes na sua obra. E são também essas infâncias e juventudes que, paradoxalmente ou talvez não, o comprovam como um dos mais sérios e adultos autores da música popular de recentes décadas.

 


Começando quase pelo fim: o coletivo Pequeno Cidadão, que formou com outros três músicos com obra relativamente relevante no panorama independente de São Paulo e cujos filhos partilham a escola com as crias de Arnaldo, é apenas a ponta mais assumida mas também mais irregular desse iceberg. A par de “Pequeno cidadão”, o videoclip que aqui destacamos no dia inaugural do blogue, “Leitinho” é uma das poucas canções com que brindou a estreia do quarteto, registada em 2009 em CD e também num DVD que propõe videos para a totalidade das faixas – e é a que nos parece ser mais digna de memória, sobretudo digna de uma memória afetiva que nos pode ser muito prática, por se tratar de uma das mais eficientes cantigas de embalar doadas em tempos recentes à língua portuguesa. Isto apesar do infeliz elogio, acentuado pelo video, ao leite de vaca para consumo humano (numa época em que, desligando a televisão e dando atenção às vias de informação que são merecedoras de credibilidade cientificamente sustentada, já está mais do que provado que o ser humano sai mais prejudicado do consumo de leite de origem animal do que alguma vez foi assumido…). Felizmente a associação ao todo poderoso leite humano mantém-se intacta. E há sempre as estrofes dedicadas ao “soninho” e ao “carinho” para garantir uma tranquila e saudável digestão…

Pequeno Cidadão, “Leitinho”:

Em Arnaldo Antunes, contudo, a linha que distingue o escalão etário alvo de cada canção é invariavelmente ténue, confundindo-se elegantemente músicas concebidas para crianças mas que viciam de igual modo os adultos, e músicas que à partida terão sido geradas para conquistar adultos mas que criam nas crianças uma empatia não muito vulgar. Esse “dom de iludir” (como diz a canção de Caetano Veloso) é o resultado do talento monumental que Arnaldo sempre evidenciou para esculpir letras tão lúdicas, palavras tão gráficas, ideias tão plásticas. Três exemplos paradigmáticos desse pensamento vocacionado para crianças sem limite de idade, seguidos de três exemplos paradigmáticos dessa ação que se move rumo a uma idade adulta “ideal”:

“Mão”:

“Tudo”:

“Hora-disso-hora-daquilo”:

“Cultura”:

“A nossa casa”:

“Alta noite”:

Aos 50 anos, com quatro filhos, Arnaldo Antunes não é – nunca foi e nunca será – um modelar criador de arte musical, literária ou gráfica para crianças, mas é um notável criador de “música para embalar adultos” (expressão com que descreveu “Saiba”, faixa originalmente oferecida a Adriana Calcanhotto para encerrar a sua primeira aventura em modo Partimpim) – “adultos” de todas as idades, entenda-se…

Amanhã, 18 de junho, às 10 da noite, um desses plurais majestáticos de Arnaldo Antunes irá iluminar a sala 1 do Cinema São Jorge, Lisboa, com um recital – viabilizado pelo nobre Festival Silêncio – que promete uma retrospetiva intimista da sua carreira, recuando até aos primevos dias dos Titãs (esperar uns passos ainda mais atrás, aos breves momentos dos seminais Aguilar & A Banda Performática já seria pedir demais…). Ou seja, provavelmente com algum material verbal impróprio para crianças, mas que os adolescentes que tiverem o bom senso de encantar os seus pais até à Avenida da Liberdade não irão esquecer com facilidade. Para os pais e outras crianças maiores de 18 anos, esta promete ser uma magnífica oportunidade para reequacionar prazos de validade da “velha infância” de cada um, perspetivando-a analogamente à do próprio Arnaldo. Será essa a mais pertinente retribuição que lhe poderemos garantir…

 

18 de junho, 10 pm
Arnaldo Antunes
“Dois violões”
Festival Silêncio
Cinema São Jorge (sala 1), Lisboa
[a partir dos 15 anos]

 

 

 

Moreno Fieschi

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Filed under Literatura, Música, Ram Ram

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