“Um livro de imagens [como este] pode ser um objeto estranho” e um desafio tamanho. Aceitámos esse desafio e o resultado foi o que se segue: uma leitura-escrita alheia de textos e poemas de outros-feitos-nossos juntam-se às belíssimas imagens de Bernardo Carvalho que selecionámos. De facto, no álbum “Praia mar”, “as palavras não estão à vista nas páginas”, mas a elas se podem colar, no topo, nas margens, como post-it-legenda, como notas de viagem pela imagem.
Alguns poemas, seguros, agarram-se às páginas como lapas, resistindo a cada investida da maré; outros, arriscam um lamber das margens, em impalpáveis carícias de espuma; outros ainda, atravessam a página em corridinhas esquivas e tolas de caranguejo. Poemas há que enterram os pés na página enquanto outros parecem boiar, hesitantes, em vai-e-vem de onda. Também os destinatários desta obra podem ser apenas leitores-ledores-escritores: crianças, jovens, adultos, não importa. São-no, em balançar de marés.
“Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até quebrarem na areia com um barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios, de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se ‘vai ali um peixe’ e já não se via nada.”
Sophia de Mello Breyner Andresen, in “A menina do mar”
Sentaram-se na areia e descalçaram os sapatos.
Puseram-se a contar pelos dedos os barcos
que faltariam para chegar o verão.
Nenhum deles falava. Tinham passado juntos
algumas noites; num quarto sem vista. E, embora
julgassem o contrário, não conheciam um do outro
muito mais do que isso.
Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.
No verão
alguém viria forçosamente buscá-los.
Maria do Rosário Pedreira, in “A casa e o cheiro dos livros”
À volta de um búzio
Dizem que o búzio nos traz
ao ouvido o som do mar.
Mas eu acho que é mentira:
se encosto o búzio ao ouvido
só ouço as ondas do ar.
As ondas do ar me trazem
forte cheiro a maresia.
Mas eu acho que é mentira:
o mar não mora nas nuvens,
nunca em nuvens viveria.
Descem as nuvens no mar
se acaso a chuva acontece.
Mas eu acho que é mentira:
se encosto o búzio ao ouvido,
ouvir o mar me parece.
Maria Alberta Menéres, in “Conto estrelas em ti”
Dormem numa cama de algas
entre rochas e corais
só não podem bronzear-se
na extensão dos areais
Porque peixes fora de água
não conseguem respirar
mexem as guelras depressa
e voltam logo ao mar
Os peixes de muitas cores
das águas fundas dos mares
sabem por ovos fresquinhos
com peixes aos milhares
(…)
José Jorge Letria, letra de uma canção escrita para o programa de televisão “A arca de Noé”
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Sophia Mello Breyner Andresen, in “Signo”
A sereia nunca mente
quando, cantando, se mexe.
Pra cá da cintura é gente
pra lá da cintura é peixe.
Se alá da cintura é peixe
e acá da cintura é gente,
canta, e se ao cantar se mexe,
a sereia nunca mente.
Nem eu cuido que haja guerra
nessa maneira de estar
com a voz lançada à terra
pelos caminhos do mar.
Os caminhos são do mar
sim, mas a voz é da terra
e nessa forma de estar
tudo haverá menos guerra
nem aberta, nem secreta,
por ter sido ou por achar
é tudo a voz do poeta
quando se põe a cantar.
Mário Castrim, in “Conto estrelas em ti”
Espuma
Mais leve que a pluma
Que no ar balança,
Pela praia dança
A ligeira espuma.
Dançando se afaga
No alado bailar!
Pétalas de vaga, poeiras do mar…
E na dança etérea,
Que imparável ronda!
Bafo de matéria,
Penugem da onda.
Afonso Lopes Vieira, in “Poesia portuguesa para crianças”
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.
Carlos Drummond de Andrade, in “Amar se aprende amando”
Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves – só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto
puríssimo, doirado.
Eugénio de Andrade, in “Mar de setembro”
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Sophia de Mello Breyner Andresen
livro “Praia mar”, de Bernardo Carvalho
Planeta Tangerina, 2011
[a partir dos 18 meses]
Paula Pina