
Sim, crescer dói porque a cada momento deixamos para trás um pedacinho de nós. Às vezes, damos conta e tentamos voltar atrás, vasculhando entre os nossos cacos e os dos outros, ou procurando nas tabuletas as indicações “Perdidos e achados de nós”. Ora encolhidos, ora altivos, ora refilando e revolucionando, ora simplesmente fungando nossas lágrimas-leite derramado. Às vezes, nem nos apercebemos. Outras ainda, colocamos aos ombros a nossa sacudida capa-do-ora-ainda-bem-teve-de-ser e seguimos. Às vezes fazemos bem, outras, nem por isso. E aqui estamos, só medos e coragens.
Homenageamos a coragem dos (das! Mulheres!) que lutaram pela “legalização da felicidade” das crianças do mundo em 1950, instituindo o Dia Mundial da Criança. Homenageamos a coragem das crianças que hoje (e ontem e de ontem, que somos nós também) nos falam dos obstáculos a essa mesma felicidade. Lado a lado. Que neste dia 1 de junho de 2011, Dia Mundial da Criança, dia de nascimento do blogue Cria Cria, nos curemos um bocadinho de nós. Crescendo e criando um bocadinho de nós. Sendo a “cria” que cria, e por essa criação deve ser amada e respeitada, aqui colocamos o que elas, pequenas, dizem, sem comentários, sem conflitos, sem omissões:
a) sobre elas, crianças, o que nos dizem elas, crianças:
“Quero ser criança quando for grande” (Daniel H., 4 anos, Bairro do Condado);
“Ser criança é ser brilho” (Inês N., 3 anos, Vila Real);
“Ser criança é quando uma pessoa porta-se mal [sic]” (Beatriz F., 3 anos, S. João da Talha);
“Vou ser criança todos os dias porque posso sujar as mãos” (Marta A., 3 anos, Vila Real);
“Eu não me lembro de ser pequenina…Quando vocês eram pequeninos, quem é que tomava conta de mim?” (Beatriz A., 3 anos, Atouguia da Baleia).
Frases retiradas do “Cancioneiro infanto-juvenil para a língua portuguesa” (volumes X e XI, “Silêncio é o barulho baixinho!…”, Instituto Piaget, 2000; e volume XIII, “A minha vida é uma memória”, Instituto Piaget, 2006).
b) e lá em casa também já se ouviram coisas como:
“Ser grande também é acordar ainda pequeminina [sic] todos os dias” (Mariana D., 4 anos, Lisboa)
“Quando for grande vou nascer pequenino outra vez” (David D., 4 anos, Lisboa)
c) sobre o que em nós, os “grandes”, não lhes agrada e que sabiamente sintetizam:
“Que estejam sempre a dizer mentiras, dizendo que sim e afinal é não”;
“Quando nos dão beijinhos com baton e cheiram mal da boca”;
“Que nos gozem quando temos medo do escuro e de outras coisas”;
“Que estejam sempre muito ocupados para brincar e depois passam horas a contar a vida toda ao telefone”;
“Que nos chamem nomes”;
“Que nos ponham de castigo e ao mesmo tempo nos deem abraços”;
“Que nos leiam as histórias a despachar”;
“Que digam que vamos fazer uma atividade muito gira e depois não tem graça nenhuma”;
“Que falem de nós à nossa frente como se não estivéssemos presentes”;
“Que nos deem sermões”;
“Que pensem logo que somos culpados”;
“Que estejam sempre atrasados e cheios de pressa”;
“Que nos digam que o Pai Natal não existe”;
“Que digam que os nossos desenhos são muito bonitos quando nós sabemos que são horríveis”;
“Que façam compras em hipermercados durante o dia todo”;
“Que não comprem as nossas bolachas mas comprem as cervejas”;
“Que nunca possam ir à minha escola”;
“Que me toquem quando eu não quero”;
“Que me batam porque não mudei a fralda à mana e não lhe dei o leite porque me distraí a ver os desenhos animados”;
“Que digam que ainda não tenho idade para fazer coisas ou que já não tenho idade para fazer outras coisas”;
“Que digam ‘que chatice, agora não é conveniente’ eu ficar doente”;
“Que digam que as pessoas que não veem e usam bengala ou andam de cadeira de rodas são coitadinhas”;
“Que me ignorem na fila do supermercado e me passem à frente”;
“Que digam mal dos meus amigos só porque são diferentes e vieram da China e da Rússia”;
“Que apontem para as pessoas que andam a pedir na rua e me perguntem se quero ser como elas porque me esqueci de fazer os trabalhos de casa”;
“Que digam que é por eu ter nascido que somos pobres”;
“Que digam que a minha música está muito alta e depois não baixem o volume da televisão quando está a dar futebol”;
“Que mandem sem dizer ‘por favor’”;
“Que não acreditem quando me dói a barriga”;
“Que me obriguem a tocar violino para as visitas”;
“Que se esqueçam de me ir buscar ao ATL”;
“Que digam que fiz de propósito quando foi sem querer”;
“Que eu goste tanto deles à mesma quando eles não gostam de mim”;
“Que façam listas que nunca mais acabam”.
Esta lista é uma recolha nossa, de frases de crianças portuguesas, efetuada em escolas e jardins de infância das regiões de Lisboa e Setúbal, a que juntámos outras, dos nossos familiares e amigos. Muitas foram recolhidas entre dezembro de 2010 e maio de 2011; outras são “pérolas” da nossa coleção pessoal.

d) as frases que se seguem são de crianças de Bolonha, Carpi e Veneza, publicadas originalmente em 1987, por Francesco Tonucci, no livro “Criança se nasce”.
“O que não nos agrada nos grandes
Que quando andamos de bicicleta queiram sempre que eu esteja à frente deles;
Que me façam comer aquilo que não me agrada;
Que me obriguem a usar fatos que não me agradam mas que lhes agradam a eles;
Que quando nós, crianças, fazemos uma pergunta aos pais, não possamos saber a resposta ou porque somos muito pequenos ou porque são coisas demasiado difíceis de explicar;
Quando nos levam para sítios para onde não gostamos de ir;
Quando os grandes conversam sobre os seus problemas e nos excluem porque somos muito pequenos;
Quando jogamos juntos e ganhamos, eles dizem que fizemos batota;
Quando se zangam entre si;
Que o meu pai ou a minha mãe descarreguem a sua raiva sobre mim;
Que tomem decisões sem a nossa opinião;
Que nunca nos deem a conhecer os seus problemas e não se façam compreender;
Que nos mandem sempre calar;
Que me obriguem a comer legumes, prometendo-se que se os comer me farão batatas fritas;
Que os professores nos gozem;
Quando o meu pai goza comigo e me chama ‘orelhas de elefante’ porque tenho as orelhas grandes;
Que falem sempre de negócios em vez de assuntos que a nós, crianças, nos são agradáveis;
O nosso professor quando explica a lição, zanga-se e, para castigo, dá um exercício para toda a turma;
Quando a minha vizinha nos impede de brincar no nosso pátio;
Quando os professores se gabam dos seus alunos;
Quando o meu pai me obriga a desenhar, porque ele é muito bom e quer que eu seja como ele;
Que o meu pai, no café, compre sempre rebuçados ao seu sobrinho e não ao seu filho (a mim);
Que praguejem;
Que fumem;
Quando o meu pai vai ao café, leva-me sempre consigo e quando chegamos lá, vai ter com os seus amigos e eu para ali… sozinho;
Que não me deem atenção;
Que não me deixem andar de bicicleta, porque têm medo que eu fique debaixo de um carro;
Quando a minha mãe lava a roupa e deve estendê-la, chama-me sempre para lhe dar as molas;
Que nos batam, quando fazemos mal qualquer coisa;
Que digam muitos ‘palavrões’;
Quando era mais pequeno, a minha mãe mandava-me para a cama depois do almoço; depois soube que ela o fazia porque as suas amigas o faziam;
Quando brinco com os meus amigos, a minha mãe interrompe-me para eu ir despejar o lixo;
Que o meu pai esteja sempre a olhar para mim, quando faço o trabalho de casa para a escola;
Que batam nos cães, quando estes os irritam;
Que queiram que nós respeitemos os meninos mais pequenos e que os deixemos ir sempre à frente no carrocel [sic] ou noutros lugares;
Que não queiram o Bolinhas, o meu cão, no condomínio;
Que quando temos febre, devemos ficar na cama;
Quando o professor de natação, antes de nos deixar ir para a água, nos faça fazer meia hora de ginástica, e assim, quando entro na piscina, vou ao fundo, devido ao cansaço;
Não me agrada tornar-me como certos pais que se embebedam ao café;
Que queiram ter sempre razão;
Não me agrada, quando me proíbem de fazer algo que eles fazem logo de seguida;
Quando prometem uma coisa e depois não a fazem;
Quando não te ouvem;
Quando dizem ‘não comas isso, não comas aquilo’ e depois se empanturram”.
Francesco Tonucci é um pedagogo, investigador e ilustrador italiano, nascido em 1941. Publica em diversas revistas pedagógicas italianas, sob o pseudónimo Frato. Concebido por Tonucci em 1968, por razões psico-pedagógicas, Frato rapidamente se torna num sucesso, tanto junto de adultos, professores e pais, como junto das crianças. O seu primeiro livro de banda desenhada foi “Com olhos de criança” e os seus desenhos, verdadeiras sínteses humorísticas, por vezes duramente satíricas, ora nos desconjuntam em gargalhadas, ora nos fazem mirar, impúdicos, as nossas vergonhas ao espelho.

Algumas obras publicadas em português:
“Criança se nasce” (Instituto Piaget, 1987)
“Com olhos de criança (Instituto Piaget, 1988)
“As novas aventuras do Pinóquio” (Instituto Piaget, 1989)
Paula Pina