Tenho, no meio da cabeça, um olho aberto para o outro lado de mim. Quem quer que seja que olhe para mim, olha sempre através de mim e vê-se… a si próprio. Pois, olhamos e pensamos que o olho é o nada, que é o buraco. Que é o vazio. O problema é que no vazio é que está tudo.
As mães das vossas crias andam constantemente a dizer: “Ai, que feio! A meter o dedo no buraco do nariz!”. Por isso é que eu acho que elas não iriam gostar lá muito de mim. Porque eu, oh, eu estou sempre a dizer: “Anda, vá lá! Enfia o teu dedo no meu olho!” Aliás, aqueles meninos formidáveis, que andam sempre a enfiar os seus dedos pequeninos nos sítios mais improváveis (para grande vergonha, preocupação e desconsolo dos seus progenitores), são mesmo, de entre os da vossa espécie, os meus prediletos. Para esses, o meu olho não é um nada-buraco-vazio. É um botão, um interruptor. Quando carregam, pfffzzoing!, a minha cabeça-ecrã dispara imagens – pouco nítidas de início, decerto. Mas se fixarem o olhar no ponto negro da minha boca durante um minuto e 10 segundos (esse é o segredo!), as escamas de peixe que me cobrem a cabeça transformam-se nas ondas do mar. Atenção, não na imagem das ondas do mar! Transformam-se nas próprias ondas do mar, essas mesmas, as molhadas, as feitas de água, as mesmas que embalam os barcos ou os engolem em espumas, movimentos e sons aterradores, as mesmas que vêm morrer aos teus pés em laçadas de espuma quando passeias à beira-mar. Os meninos podem até enfiar o dedo no meu olho nessa altura, porque ele sairá molhado e salgado (ou, como já aconteceu recentemente, escuro e oleoso, por causa da poluição e dos derrames de petróleo, acho eu).
Muitos tentaram vestir-me, compor-me, ataviar-me, enjaular-me. Posso até ser escovado, penteado e alisado. Podem até achar que fico bem de papillon preso a meio pescoço (e fico, modéstia à parte). Mas não resulta durante muito tempo, lamento informar-vos. Dura pouco mais do que os segundos de um disparo de fotografia. A fatiota desfaz-se em suspiros de giz e o pêlo eriça-se ou retorce-se em sinuosos caracóis, indomáveis, inesperados. Na verdade, nunca me preocupei muito com isso. Sou como sou e pronto.
Já me explicaram que na minha árvore genealógica tenho ciclopes, gigantes de um só olho no meio da testa, o que faz todo o sentido. Mas também me disseram que devo ter tido um antepassado minotauro e uma avó sereia. Já me chamaram robô e até, vejam bem, lobo! Lobo?! Quando me chamaram isso só me lembrei da história da menina Capuchinho Vermelho e do lobo disfarçado de avozinha, e deu-me uma imensa vontade de rir. Eu, lobo, com este olho? “Oh Avó, porque tens uns olhos tão grandes?”… Bah!! Eu, lobo, com esta boquinha? “Oh Avó, porque tens uma boca tão grande? Para te comer melhor! – disse o lobo saltando da cama”. No meu caso, só se a menina Capuchinho fosse sorvida por uma palhinha!
Há depois a questão das orelhas. Na verdade, são meio orelhas, meio antenas, meio chifres. Servem para ouvir, para captar e transmitir, como quaisquer orelhas e antenas normais. Mas quando as arrebito e as estico, e se transformam em chifres, servem para mais algumas coisas: para secar roupa, enfiar argolas e deixar recados em folhas de papel… Não percebo bem por que razão, mas uma vez uns senhores muito finos, com umas roupagens brilhantes e uns gorros vermelhos e verdes enfiados na cabeça, viram-me passar, ali para os lados do Campo Pequeno, ia eu a meio de uma importante transmissão para um projeto, de orelhas espetadas portanto, e desataram aos saltos e correrias. Até houve uns que se puseram, de mão na anca, aos gritos: “Eh touro! Eh touro!”. Isto de ser como sou e ter este tipo de orelhas pode ser complicado para alguns de vós, não é? Há realmente criaturas da vossa espécie que são tão ignorantes que não sabem que eu sou um Petramarfilocrocéfaseeseaclop (See Seaclop, para os amigos), construtor e desconstrutor (de muros, paredes e outras construções, reais ou inventadas, muralhas de cubos e castelos de Lego), ao vosso dispor.
Paula Pina, a partir de uma ilustração de Cesária Martins